Durante o período da ditadura militar, mais precisamente por ocasião do Governo Médici, o país vivia sob tensão e medo. Tudo era motivo para os militares perseguirem e prenderem cidadãos a qualquer pretexto, desde que desconfiassem discordância do que estabeleciam como ordem social. Chico Buarque já era um artista famoso e conhecido por suas músicas de protesto. Tentando driblar a censura decidiu enviar para análise composições com autoria fictícia. Usou o pseudônimo de Julinho de Adelaide. E deu certo. A canção “Acorda amor” foi uma das que conseguiram passar pelo crivo dos censores sem que desconfiassem que se tratasse de uma composição de Chico.
“Acorda amor/Eu tive um pesadelo agora/Sonhei que tinha gente lá fora/Batendo no portão, que aflição!”. O personagem da música narra o estado de tensão que vivia e a agonia de acordar na suposição de que sua casa estava sendo invadida. Acorda a companheira para alertá-la do medo que o afligia, mas ainda interpretando tudo aquilo como se fosse um pesadelo, um sonho que inquieta.
“Era a dura, numa muito escura viatura/Minha nossa, santa criatura/Chame, chame, chame lá/Chame, chame o ladrão, chame o ladrão!”. Percebe angustiado que não era um sonho agitado, mas a dura realidade que batia à sua porta. Na verdade era a polícia da ditadura que aparecia na madrugada. Normalmente as invasões à nossa privacidade, na intimidade de nosso lar, realizadas à noite, partem de “ladrões”. No caso era a polícia, de quem se esperava proteção. Resolve inverter os papéis, pede para chamar o ladrão para socorrê-lo porque a polícia é que está lhe ameaçando.
“Acorda amor/Não é mais pesadelo, nada/Tem gente lá no vão da escada/Fazendo confusão, que aflição!”. Alerta a companheira de que ouve barulho estranho na escada, logo, realmente não se trata de pesadelo mesmo. Compreende então do que se trata, está prestes a ser preso pelos ditadores.
“São os homens/E eu aqui parado de pijama/Eu não gosto de passar vexame/Chame, chame, chame/Chame o ladrão, chame o ladrão”. Consciente do que está para acontecer, se vê numa situação humilhante, ainda com a roupa de dormir, de pijama. Imagina a vergonha que sentirá a se ver preso, sendo um cidadão de bem, confundido com marginais e bandidos. A quem recorrer e pedir ajuda? Valores invertidos; então só lhe resta chamar o ladrão para enfrentar a polícia em seu socorro.
“Se eu demorar uns meses convém, às vezes, você sofrer/Mas depois de um ano eu não vindo/Ponha a roupa de domingo e pode me esquecer”. Naquela época era comum se ouvir falar de desaparecimentos de presos políticos. Pessoas de quem nunca mais se teve notícias após serem recolhidos em prisão. Por isso o personagem adverte a mulher de que nos primeiros meses, será natural que ela sofra com sua ausência na esperança do seu retorno, mas passado um ano, melhor se preparar para enfrentar notícias piores, prevendo que possa ocorrer com ele o que sabe ter acontecido com muitos em situação igual.
“Acorda, amor/Que o bicho é brabo e não sossega/Se você corre o bicho pega/Se fica, não sei não”. O governo não está para brincadeira, essa a nova mensagem que ele deixa à companheira. Eles não sossegam enquanto não colocam atrás das grades todos os contestadores do regime. A situação é de não saber o que fazer “se correr o bicho pega”, o que quer dizer que de nada adianta fugir, eles sempre alcançarão quem estão querendo encontrar. Se ficar também não tem como escapar da perseguição, nunca o considerarão inofensivo, em razão da passividade.
“Atenção/Não demora/Dia desses chega a sua hora/Não discuta á toa, não reclame/Chame, chame lá, chame, chame/Chame o ladrão/(Não esqueça a escova, o sabonete e o violão)”. O simples parentesco já seria motivo para sua mulher passar a ser vista como perigo para o sistema, daí ele dizer que deve se manter atenta. Teme que poderá chegar a hora em que ela também seja encarcerada. Se isso vier a suceder, faça como ele, chame o ladrão, mesmo sabendo da inutilidade desse chamamento, apenas para dar ênfase a troca de papéis do policial com o bandido. Não tendo nada mais o que fazer, é apanhar basicamente o necessário, escova e sabonete, mas sem esquecer o violão, porque através dele poderá mandar recados importantes para os que estão ainda em liberdade.
• Integra a série de crônicas “PENSANDO ATRAVÉS DA MÚSICA”.

