“ESGOTEI! PERGUNTAR OFENDE, A QUEM?”
Perguntar pode ofender, mas eu vou continuar, porque não entendo por que insistem tanto em quebrar a regra do gabarito na orla. Vejo vereadores tramando nas “coxias”, temos um prefeito que já fez parte de associação dos construtores SINDUSCON, figuras cartoriais e, agora, dirigentes empresariais: todos defendendo a ruptura de um patrimônio ambiental que pertence à cidade de João Pessoa.
Siga o canal do WSCOM no Whatsapp.
Que “sanha” é essa? Que “interesse difuso” é esse, em que tantas figuras convergem para o mesmo ponto, permitir que a orla perca justamente o que a diferencia?
Quando os construtores entraram e construíram sob as novas metas da LUOS, Lei do Uso e Ocupação do Solo, sabiam que havia conflito. Sabiam que aquele texto era questionado, que contrariava normas de gabarito e que ia de encontro a uma decisão valorizada pela população, que sempre identificou na orla protegida um símbolo de João Pessoa. Mesmo assim, insistem. E insistem de um modo que, para o cidadão comum, soa como sacanagem, como safadeza, como se a cidade respirasse esse tipo de manobra: muda-se uma regra, empurra-se uma interpretação, e tudo segue como se nada tivesse ocorrido, sem esclarecimento, de forma difusa.
O artigo 62 da LUOS, ao que se percebe, foi construído em revelia, por baixo do pano, e ainda teve quem aceitasse a relativização, como se 80 centímetros não fosse nada, como se não “apagassem” nada. Mas afeta, sim, Senhor Desembargador.
Afeta a ética, afeta a moral pública, afeta a definição do que foi estabelecido por norma e por lei da Constituição da Paraíba. E, quando se abre essa fresta, abre-se também a porteira para o “pouco” virar “muito”, para a exceção virar regra, para o gabarito virar ficção. É assim que o patrimônio coletivo é corroído: não se derruba uma proteção de uma vez, enfraquece-se aos poucos, por remendos, por ajustes, por “técnicas” e “equilíbrios” que, no fim, só beneficiam quem já tem poder de pressão e de contrato.
E o mais grave é que isso não é novidade. Tempos atrás, quase ninguém lembra, mas essa própria lógica já foi quebrada no governo Cássio Cunha Lima, para acomodar interesses em Cabedelo, com o episódio das Torres do Moinho Dias Branco. Foi na Assembleia Legislativa que articulações políticas viabilizaram aquelas torres. Ou seja: consultores, industriais e senhores do poder já tentaram antes, e tentam de novo, quebrar uma norma que, para mim, é tudo o que João Pessoa tem de mais digno. A cidade não é laboratório de vaidade imobiliária, não é tabuleiro de quem compra influência e vende paisagem.
A única coisa que diferencia João Pessoa de tantas capitais litorâneas é a orla protegida, sem espigão. E, ainda assim, todos querem quebrar. Por quê? Por que insistem em denegrir o litoral de João Pessoa? Por que tanto esforço para transformar um traço identitário em oportunidade de lucro? Cadê o movimento ESGOTEI? Eu não vi passeata na rua, não vi faixa, não vi mobilização consistente. Se não fosse o Ministério Público, o que teria acontecido? E por que a cidade, que deveria se indignar em coro, parece aceitar essa erosão como se fosse apenas um “debate técnico”, uma questão “administrativa”, uma disputa “jurídica” abstrata?
No meio disso, o Tribunal de Justiça, raramente, assumiu em favor da população: conscientemente e coerentemente, trabalhou em favor do cidadão. O recado é simples: ou se respeita, ou se perde. Se romperem isso, perde-se o que há de mais digno: a ética, a moral pública e a própria identidade da cidade. E é exatamente por isso que incomoda tanto ver a insistência, após a decisão do TJPB, para “acomodar” interesses, “salvar” cronogramas, “preservar” licenciamentos, como se o problema fosse apenas ajustar o fluxo do investimento. Não é. O problema é que o investimento, quando entra sem limite, devora o que encontra: devora vista, devora vento, devora sombra, devora espaço público, devora qualidade de vida.
A nota de Cassiano Pereira, presidente da FIEPB, é um exemplo cristalino de retórica corporativa disfarçada de equilíbrio, publicada logo após o TJPB declarar inconstitucional a LUOS de João Pessoa. Sob o manto de “soluções equilibradas”, tenta-se enquadrar a construção civil como salvadora da economia paraibana, como se
a cidade devesse gratidão eterna a quem constrói. As palavras são bem escolhidas: “proteção ambiental com desenvolvimento sustentável”, “segurança jurídica”, “direitos adquiridos”.
Invoca-se planejamento de longo prazo e boa-fé dos investidores, como se a FIEPB ocupasse o papel de guardiã altruísta do interesse público. O subtexto, porém, é transparente: deixem construir, que empregos cairão do céu; deixem passar, que a economia agradece; deixem flexibilizar, que o mercado “resolve”.
Mas o que se chama de “desenvolvimento sustentável” cheira a espigões de luxo, não a patrimônio coletivo. A LUOS, declarada inconstitucional por vícios formais e materiais, foi tratada como plataforma para ampliar alturas em áreas sensíveis da faixa litorânea. A Lei do Gabarito, ao impor limites, sempre foi apresentada como conquista social de proteção ao patrimônio ambiental, cultural, paisagístico, histórico e ecológico da cidade. O reconhecimento desse patrimônio, na nota, funciona apenas como prefácio para a crítica velada: é preciso “regras claras” que não travem financiamentos, cronogramas e licenciamentos já emitidos. Como se a decisão do Tribunal fosse um inconveniente a ser contornado, e não um limite a ser obedecido.
E aqui entra o ponto que exige indignação: o que se vende como “segurança jurídica” é, muitas vezes, segurança para o oportunismo. Segurança para que construtores oportunistas preservem projetos desenhados na borda da legalidade, ou para além dela, e continuem operando como se a cidade fosse um ativo. Segurança para proteger o ganho privado, transferindo o custo para a população. Porque a população é quem paga a sombra, o adensamento, a pressão sobre serviços, o trânsito, a disputa por espaço, a privatização simbólica da praia e o apagamento do horizonte.
E, quando o dano se instala, dizem que é tarde: “o prédio já está ali”, “o contrato já foi assinado”, “há direito adquirido”. O truque é antigo: constrói-se o fato consumado e, depois, exige-se que a cidade se adapte.
A insistência em quebrar o gabarito, agora, se apresenta como arranjo corporativo. ANOREG, FIEPB e SINDUSCON (esse se omite maquinando por trás) aparecem como peças de um mesmo tabuleiro, cada qual com sua linguagem: o cartorial com sua lógica de formalização; a indústria com seu discurso de crescimento;
a construção com seu apetite por verticalização. O objetivo, no entanto, converge: relaxar, flexibilizar, “modernizar” para manter de pé o que foi barrado, para salvar empreendimentos e cronogramas, para empurrar uma “solução intermediária” que, no fundo, desrespeita o espírito do gabarito e contorna o que foi decidido pelo TJPB.
É o velho pacto: chama-se de diálogo o que é pressão; chama-se de equilíbrio o que é concessão; chama-se de sustentabilidade o que é especulação.
Não se trata de demonizar a construção civil, nem de negar emprego e renda. Trata-se de reconhecer o óbvio: emprego e renda não podem ser chantagem para destruir patrimônio. Uma cidade não se mede apenas pelo PIB; mede-se pelo modo como protege seus bens coletivos, pelo respeito à paisagem, pelo direito ao litoral como espaço democrático, pelo planejamento que não se ajoelha diante do lobby. O gabarito da orla não é capricho estético: é política pública de proteção. É uma escolha urbana e ambiental que preserva identidade e qualidade de vida.
Por isso a pergunta volta, e volta mais dura: por que insistem tanto? Porque há lucro. Porque a vista vale dinheiro. Porque a proximidade do mar vira cifra. Porque a verticalização, travestida de “progresso”, movimenta interesses que se articulam com facilidade. E porque, quando a sociedade não ocupa a rua, ocupam os gabinetes.
O recado, então, precisa ser dito sem delicadeza: respeitem o gabarito. Respeitem a decisão do TJPB. Respeitem João Pessoa. A orla protegida é patrimônio do povo, não prêmio de quem tem capital para comprar altura. Se abrirem a porteira, depois não adianta chorar.
O horizonte perdido não volta. A sombra instalada não recua. E a identidade, uma vez vendida, não se recompra com notas corporativas sobre “equilíbrio”. Equilíbrio real, aqui, é simples: a lei vale, a decisão judicial se cumpre, e o litoral permanece público, vivo, respirável e digno.
SE A CIDADE NÃO FALA ALTO, FALA O LOBBY.


