Existe almoço grátis? Nas Supremas Cortes, às vezes, parece que sim.
O que definitivamente não existe é estacionamento.
O caos urbano está instalado — não apenas nas ruas, mas na alma institucional do país. Não há vagas para a ética, nem para a moral. Estão reservadas há muito tempo, mas ocupadas indevidamente por alguns senhores ministros, parlamentares e gestores que decidiram estacionar onde bem entendem, ignorando placas, faixas, limites e, sobretudo, o olhar do cidadão comum.
Os ministros, hoje, se confundem com o próprio caos urbano: sem ética, sem moral, semelhantes aos gestores públicos que aprenderam a driblar a lei com a mesma habilidade com que desviam dos buracos no asfalto.
Ética e moral, no entanto, não são conceitos abstratos nem adornos retóricos para discursos solenes. São — antes de tudo — práticas que consistem em seguir o que está estabelecido nos decretos, na lei, no ordenamento jurídico vigente. É cumprir a regra mesmo quando ninguém está olhando. É saber que o cargo não é blindagem, mas responsabilidade ampliada.
Além do jurídico, sempre foi necessário trabalhar a ordem técnica. Nenhuma cidade funciona sem engenharia, sem cálculo de capacidade de carga, sem perímetro definido. Nenhuma democracia funciona sem limites claros, freios e balizas. A ordem moral não é acessória: ela sustenta a técnica e dá sentido à norma. Quando essa engrenagem se rompe, o que resta é improviso, justificativa posterior e a velha frase cínica: “sempre foi assim”.
Perdemos todos os sentidos e perímetros na ética e na moral. Não há mais estacionamento nos relacionamentos institucionais, na praça dos direitos coletivos. Ninguém respeita mais o parâmetro da baliza. Invade-se o espaço do outro, atropela-se o rito, relativiza-se a regra.
A pergunta insiste: aonde chegaremos? A uma cidade onde carros oficiais tomam todos os espaços da rua, intimidando os pequenos veículos, obrigando-os a circular eternamente, sem nunca encontrar uma vaga legítima?
Ou chegaremos ao ponto em que dicas de ministros, gestos ambíguos, silêncios estratégicos e decisões seletivas corroerão de vez a cidadania, lançando dúvidas definitivas sobre o que ainda se pode chamar de moral pública?
Quando o exemplo que vem de cima falha, a base racha. A pedagogia do poder é sempre silenciosa, mas profundamente eficaz.
Não existe almoço grátis, muito menos estacionamento na cidade. Toda escolha tem custo. Toda omissão cobra juros. Dentro dessa ótica, precisamos de baliza. Precisamos verificar o moral.
Onde estaciona a Suprema Corte diante da população? Onde estaciona o Legislativo, quando transforma mandato em negócio? Onde estaciona o Executivo, quando governa olhando mais para o retrovisor do poder e da reeleição do que para o para-brisa da realidade social?
A baliza nos deu a possibilidade de saber estacionar: ensina distância, cuidado, limite. A baliza técnica nos deu noção do nosso perímetro. Já a baliza ética deveria ensinar algo ainda mais básico: até onde posso ir sem violar o espaço do outro e a confiança coletiva.
O problema é que a Suprema Corte, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário parecem ter desaprendido essa manobra simples. Avançam, recuam, raspam na calçada da legalidade e fingem não ouvir o barulho.
Como proclamar princípios em praça pública se, nos bastidores, eles são negociados? Como exigir decoro se o próprio conceito foi esvaziado por sucessivos exemplos de privilégios naturalizados?
Não pelo lado A nem pelo lado B: é por castas de juízes, promotores, procuradores e diplomatas. Todo lado deve ter ética e moral, porque ética não é ideologia, é fundamento. Moral não é discurso, é prática reiterada.
É nesse ponto que a velha máxima retorna com força: “à mulher de César não basta ser honesta, é preciso parecer honesta”. Os seres supremos da República — ministros, deputados, senadores, presidentes — não podem viver apenas da legalidade estrita, do “não fiz nada ilegal”. Precisam viver da honra.
Precisam compreender que a aparência de correção é parte inseparável da legitimidade democrática. Imaginem as conivências com escritórios de filhos e mulheres de ministros, transitando em causas milionárias como se fosse algo normal. Chega a ser cínico.
Quando um ministro aceita benefícios indiretos, quando um parlamentar negocia favores à sombra da lei, quando um presidente relativiza a gravidade de seus atos, não é apenas sua biografia que está em jogo, mas o crédito simbólico das instituições, os orçamentos secretos e as causas acordadas.
E crédito, uma vez perdido, não se recompõe com discursos técnicos ou notas oficiais. Crédito moral se constrói lentamente e se perde em alta velocidade.
A população, que observa tudo do ponto de ônibus, percebe quando o carro oficial para em vaga proibida e ninguém multa. Percebe quando há voo grátis para poucos e tarifa cheia para muitos. Percebe quando existe honorário para a mulher de César, enquanto o cidadão comum paga a conta sem sequer saber o valor final.
O drama institucional brasileiro não é apenas jurídico, é ético. Não é apenas político, é moral. Criamos um sistema onde tudo pode ser explicado, mas quase nada pode ser justificado. Onde a retórica substitui a responsabilidade e a técnica serve, muitas vezes, para esconder escolhas morais questionáveis.
Nesse ambiente, a exceção vira regra, e a regra vira incômodo.
A crônica da República contemporânea é a crônica do estacionamento impossível. Todos querem parar, poucos querem respeitar a vaga. Todos reivindicam direitos, poucos aceitam limites.
E enquanto isso, a cidade democrática se congestiona, buzinando indignação, acumulando frustração, perdendo a fé nas placas que ainda insistem em dizer “proibido”.
Talvez ainda haja saída. Talvez seja preciso reaprender o básico: reduzir a velocidade, olhar os espelhos, reconhecer e respeitar a faixa, aceitar que nem todo espaço é nosso.
Ética não é heroísmo, é rotina. Moral não é espetáculo, é coerência.
Quando os poderes entenderem isso, talvez não exista almoço grátis, mas haverá, ao menos, um lugar legítimo para estacionar a honra.
Quem conrrigirá as incongruências amorais

