E, isso virou motivo de brincadeira de um amigo que ri sempre que repito essa frase. Ele pergunta por que alguém perderia tempo com planta ornamental, que não vende, enquanto ele alimenta gado, como se alimentar gado fosse a mais alta expressão do trabalho humano.
Meu amigo insiste: Homem, por que você não larga dessas plantas, é perda de tempo e vai ‘trabalhar” com gado?
E eu respondo: Porque gado dá lucro. E tudo o que dá lucro nesse país acaba maltratado.
Ele ri, mas o riso dele tem um quê de resignação. Quem cuida de gado conhece a história antiga, desde que o primeiro invasor chegou desmatando, adentrou por esses rios que antes eram caminhos indígenas, o gado entrou primeiro, o homem branco veio depois, e o indígena foi empurrado para longe. Quando não para longe, para fora da própria terra. Nas margens de cada rio do Brasil corre também essa memória: o boi avançou, o índio recuou e arrasou o lugar. E o Estado chegou por último, botando imposto e carimbo, mas nunca cuidado.
E assim seguimos, como se estivéssemos ainda na colônia, só que agora com antena parabólica, streaming, drone e aplicativo para chamar XX. O cuidado ficou no passado.
E aí começa nossa conversa. Alimentar gado, digo a ele, é uma atividade muito mais trabalhosa do que ele imagina, porque não se trata só de dar capim ou ração, trata-se de sustentar um modelo inteiro de país que, desde a chegada dos primeiros invasores, se organizou em torno da lógica do curral. Esse país alimenta gado há séculos, mas o gado que deveria ser robusto virou um rebanho minguado, maltratado e substituído por outros interesses.
E o mais grave é que o cuidador oficial desse gado, o Estado, não sabe, nunca soube e raramente tentou aprender a cuidar. De vez em quando aparece uma Finlândia, uma Noruega ou uma Suécia, os antigos bárbaros, mostrando ao mundo que é possível cuidar das pessoas como quem cuida de um animal valioso. Mas aqui, enquanto um ou outro país nórdico vira exemplo de civilidade, seguimos brincando montar com currais políticos, administrativos e territoriais que tratam gente como insumo descartável. Já brinquei de forte apache. Santa Catarina me proteja do “alemão”.
Quando digo que cuido de bromélias, meu amigo enxerga frescura. Mas não é frescura, é estratégia. Bromélia não briga, não protesta, não cobra promessa e não pergunta por políticas públicas. Bromélia só existe. E, ao contrário de muita instituição que deveria cuidar de gente, a bromélia devolve aquilo que recebe. Ela dá abrigo a insetos, a pequenos seres, regula a própria água, sobrevive. Ela responde bem ao mínimo de atenção. Já gente, não.
Gente abandonada vira estatística, vira mão de obra barata, vira fila de espera, vira ocupação irregular, vira tudo o que não deveria virar, vira bucha de canhão de milícia, facções e partidos políticos. Por isso prefiro cuidar de planta, planta, pelo menos, não precisa implorar para ser cuidada.
E quando falo em cuidar, não estou falando daquele cuidado formal, burocrático, que o governo adora colocar em ata, em decreto ou em discurso. Estou falando do cuidado real, aquele que exige primeiro educação, presença da saúde, atenção ao bem-estar, vigilância contra bandidos e usurpadores e tempo para colher gente.
É o cuidado que meu amigo precisa ter quando quer que uma cria vire garrote e depois boi. Ele sabe que, para dar lucro, primeiro precisa haver cuidado. Mas o país, ao contrário do meu amigo, nunca entendeu essa lógica. Este país sempre quis o lucro imediato com cobrança de imposto, o ganho rápido para gerar se vereadores, deputados, senadores,s, a expansão fácil de prefeitos a Ministros Supremos, e para isso sacrificou gente, terra, floresta e rio. E segue sacrificando a moral, ética, o senso publico. Mas com Jurisprudências Constitucionais.
Se pensarmos bem, essa conversa sobre cuidar leva direto ao estado das coisas nos nossos biomas. Olhe para qualquer região do Brasil e se verá uma história parecida, avanço sem planejamento, exploração sem reposição, abandono sem remorso. As invasões não são mais as mesmas dos séculos passados, mas continuam funcionando com a mesma lógica. Antigamente o invasor vinha de caravela, agora vem de retroescavadeira, de empreendimento imobiliário, de garimpo, de grande produção agrícola, ou até de facção criminosa que domina pedaços de território, nossos antigos bairros, como se fosse coronel moderno. E, no meio disso tudo, gente que vive da terra, da água e do ar vira inconveniente, se tem critica são absurdos, se não, massa de manobra surda.
A Mata Atlântica, por exemplo, é a prova mais clara do fracasso nacional. O bioma que cobria toda a costa virou um punhado de fragmentos disputados entre condomínio, indústria e rodovia. A Amazônia virou palco de disputa internacional e interna, onde todo mundo fala em soberania, mas quase ninguém fala em cuidado.
Pouco ouvi falar do Instituto Goeldi, onde está sendo sediada a COP de Belém. Bem be-lelém nortista gostava, não te querem mais tanto bem. Assim diria hoje Manuel Bandeira, de seu verso amazônico.
O Pantanal virou brasas nos últimos anos, queimando como se fosse descartável. E o Cerrado, que é frequentemente tratado como savana menor, é na verdade a caixa d’água do país. Mas continua sendo desmatado como se não houvesse consequência.
E a Caatinga, que quase nunca entra nos noticiários, continua sendo o bioma mais mal interpretado. O Brasil trata e pensa que é só mato seco, quando na verdade é um conjunto complexo de espécies adaptadas, água escondida, ciclos próprios, da Neoglazióvia variegata, CARUÁ, pura inteligência natural, floresce nas sombras das catingueiras e pereiros.
O abandono da Caatinga é símbolo de como o país trata aquilo que não entende: ignora, explora e depois lamenta. O sertanejo, e o sertão que tem dentro da gente, que vive nela chora, igualmente sofre e padece. É negligência dupla, com o território e com quem mora nele.
Ao contrário das bromélias, que aprendem a se equilibrar sozinhas, a Caatinga não consegue se salvar de queimadas criminosas, do desmatamento irregular e do descaso sistemático com quem ali vive.
Quando olho para tudo isso, percebo que o padrão é o mesmo. Os governos, em geral, cuidam mal da gente. Alguns países nórdicos dão aula do contrário, mostrando que é possível cuidar das pessoas como parte do patrimônio nacional. Mas aqui seguimos repetindo a lógica do curral, muita cerca, muito chefe, pouco cuidado. O cuidado real não aparece nas planilhas. Não dá manchete. Não rende discurso. Então, enquanto isso, o país continua alimentando um gado simbólico, um gado metafórico, partidários de centros, de direita, e esquerda. Obtusos que defecam, (CAGAM) para o povo, o cidadão que sobrevive custeando do próprio esforço para pagar ao ERÁRIO.
Cuidar de planta, de bicho e de gente deveria estar no mesmo nível de prioridade, mas não está. Planta só tem valor quando vira produção, bicho gente só tem valor quando vira mercado, eleitor, e usuário e povo só tem valor quando vira voto.
Meu amigo me diz que alimentar gado é duro, mas seguir alimentando um país inteiro sem cuidado é ainda mais. Ele sabe que, para ter retorno, precisa primeiro respeitar o ciclo do animal. Mas o Estado quer retorno sem ciclo, sem tempo, sem cuidado, quer o boi pronto sem cuidar do bezerro e receber o peso. Na vida real, isso não funciona. E por isso eu sigo preferindo minhas bromélias, que exigem pouco e ensinam muito.
Cuidar delas me lembra todos os dias que o mundo poderia ser melhor se houvesse alguma política que entendesse que vida é processo, investir em cidadãos que são produtos incertos.
E quando penso no futuro dos biomas, das pessoas e do próprio país, lembro do epitáfio dito sobre a Mata Atlântica, repetido tantas vezes por ambientalistas e estudiosos: “Aqui jaz a floresta que abrigou este país, destruída mais pela falta de cuidado do que pelos golpes do machado.”
Esse epitáfio, infelizmente, serve para quase todos os nossos biomas. O perigo é que, se continuarmos nesse ritmo, vamos precisar escrever versões adaptadas para o Cerrado, para a Caatinga e, quem sabe, até para nós mesmos. Porque onde falta cuidado, sobra ruína. E, ao contrário das minhas bromélias, o país não está conseguindo sobreviver sozinho.
Ao amigo Lynaldo Cavalcanti Filho

