Aproveitando uma semana em que teremos um grande evento com as minas no front recebendo a banda Eskrota (SP) ao lado da Terror Fúnebre (RN), somadas às nossas anfitriãs Matriarcaos e Long Way Home decidi trazer para a pauta algo que muitas pessoas ainda desconhecem: as dificuldades reais enfrentadas pelas mulheres na cena underground paraibana, especialmente em João Pessoa.
Em um contexto historicamente marcado pelo protagonismo masculino, a presença feminina no underground carrega camadas de resistência, memória e reconstrução. Entre diferentes gerações, Olga Costa e Beatriz Jarry representam dois momentos de uma mesma luta: o de criar espaços próprios para que mulheres não apenas participem da cena, mas a construam, registrem e transformem.
Olga, pioneira no jornalismo, na produção cultural e na difusão do rock independente desde os anos 1980, ganhou relevância quando atuou como locutora e produtora do programa Jardim Elétrico um dos primeiros do Estado dedicado exclusivamente ao rock alternativo. Além disso, integrou bandas locais e fundou o selo Microfonia, responsável por impulsionar trabalhos de grupos como Rotten Flies, Disunidos e Zefirina Bomba. Sua trajetória não é apenas uma participação: ela ajudou a erguer parte da estrutura que hoje sustenta o cenário.


Já Beatriz, mesmo com apenas três anos de atuação, assume esse legado a partir de outra trincheira: a comunicação digital. Criadora da Mortífera Mag, ela preenche uma lacuna histórica ao dar visibilidade a bandas nordestinas que raramente encontram espaço nos meios tradicionais, registrando a cena a partir de dentro, com curadoria e olhar crítico.

Ao reuni-las nesta entrevista, aproximamos passado e presente para compreender como as mulheres seguem abrindo caminhos mesmo quando os portões continuam pesados. Aqui, mais do que falar sobre música, tratamos de permanência, enfrentamento e autoria. Por isso, deixei que ambas falassem livremente. O resultado você confere abaixo: uma conversa necessária e potente.
Olga, quais foram as maiores barreiras que você encontrou para ser levada a sério dentro da cena underground sendo mulher e lembrando que antes a presença feminina era bem menor que atualmente?
Sempre lembro do Neil Tyson quando a pergunta é em torno de barreiras e dificuldades. Perguntaram pra ele a razão de não ter muitas mulheres na Astrofísica. Ele respondeu dizendo que “nunca tinha sido mulher, mas nasceu preto” e isso foi o suficiente para que todo tipo de desvios ou argumentos para dissuadi-lo, aparecessem de diversas formas, ao longo de sua caminhada. Agora, imagina uma mulher querendo adentrar em um universo, quase exclusivamente, masculino? Confesso que na época, eu não pensei sobre o que iria enfrentar. A minha paixão pela música e pelo rock me geraram um hiperfoco. Fui deixando pra trás os assédios, as piadinhas e sempre dizendo não ao que esperavam de mim. E isso não se resume ao cenário underground. É o que vivenciamos todos os dias. Algumas pessoas têm a pachorra de dizer que hoje está bem melhor! Não, não está! Tivemos avanços, claro, mas infelizmente, os avanços parecem ter contribuído para que o ódio às mulheres crescesse. Se o machismo é estrutural, o ódio às mulheres é um elemento que ampara essa construção centenária. E como se desconstrói isso?
Olga e Bea, vocês concordam comigo que a cena atual tem uma presença feminina de público relativamente boa comparado a antes e vem crescendo, o que falta para ter também mais bandas femininas na cena paraibana?
Olga – Acredito que essa pergunta está diretamente ligada à anterior, uma vez que, a escravidão no sistema foi normalizada, com uma carga de trabalho descomunal. Fazenos trabalhos gratuitos dentro de casa e ainda pedem por mais! Mas está tudo bem, não é mesmo? As mulheres deveriam estar em um palco! Não desses que abarcam uma banda, um palco muito maior!
Bea – Eu acredito que essa parte de comparado ao de antes seria mais adequado Olga responder hahaha cheguei faz 3 anos em João Pessoa após morar a vida inteira em outro país onde a concepção da participação feminina e o feminismo era completamente oposta a visão daqui. Acho bem raso poder falar que o que falta é “mais mulheres na cena, mais mulheres tocando”, isso é um fato. O que de fato falta acredito que seja uma rede melhor de apoio e acolhimento. Bota um show com 4 bandas apenas de homens e bota outro com 3 bandas só de mulheres, a diferença gritante começa aí. O que falta é a galera se conscientizar que tá falhando sim e que é um meio completamente machista, principalmente quando falamos de rock. Não falta mulheres que toquem, não falta mulheres que façam, falta é olhar para o próprio nariz e reconhecer que não enxergam o trabalho da mulher que nem de outros caras e bota em uma posição sempre como precária ou em extinção.
Bea, em algum momento você já sentiu que seu trabalho ser desrespeitado? Como lidou com isso?
De forma direta, não. As pessoas nunca fazem de forma direta, muito menos em João Pessoa. Menina na faixa ainda dos 20, sou um prato cheio para rockeiro tiozão falar mal. Porém houve umas situações, de menosprezo já diante de uma galera aí e de inventarem coisas para tentar fragilizar ou causar algum dano na minha imagem. Ou seja, difamação hahaha inclusive, é crime e a galera que fomentou isso daí meio que esqueceu. Mas o que fiz, como faço com muitas situações como essas de lidar com gente babaca, é apenas rir mesmo. É muita estupidez que chega a ser engraçado. Porém, ao mesmo tempo que estou rindo, lembro bem das caras que desrespeitaram por um motivo bem óbvio. Como diz a primeira faixa do disco de estreia da Alissa White-Gluz no Arch Enemy (War Eternal): Never forgive, Never forget!
Olga, ambiente underground ainda é visto como “livre” e “revolucionário”, mas na prática ele pode reproduzir machismos estruturais num nível bem parecido com o mainstream. Você concorda?
Eu não acredito nessa “Division Bells”. Nem acredito que o underground seja livre, muito menos revolucionário. A reprodução estrutural é a mesma do mainstream. Existe sim, mais liberdade para experimentar e criar. As pessoas viraram zumbis. Décadas atrás os filmes de zumbis era considerados como “terror”. Hoje é a realidade.
O que vocês diriam para quem afirma que a cena underground já é “inclusiva o suficiente” e que falar de machismo hoje seria vitimismo ou exagero?
Olga – Eu diria para ela encontrar a porta que a levou para Nárnia e voltar!
Bea – “Chyna wins her first intercontinental championship: No Mercy 1999, 00:30
Encerrar esta resenha não é concluir uma discussão. É reconhecer que ela permanece em aberto porque a luta que a sustenta também continua. As falas de Olga e Beatriz, ainda que nascidas em tempos e contextos diferentes, revelam um ponto comum: a cena underground paraibana sempre teve mulheres como pilar, mas raramente como destaque.
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