A madrugada do dia 29 de setembro de 1968 ficou registrada como um dos mais importantes acontecimentos da história da música popular brasileira. Era a finalíssima do III Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo, e que levou mais de vinte mil pessoas ao Maracanãzinho. Surpreendentemente o público vaiou por dez minutos, dois dos mais expoentes nomes do cenário artístico musical brasileiro, Tom Jobim e Chico Buarque, por ocasião da apresentação da canção “Sabiá”, que o júri colocou como primeiro lugar no certame. A decisão contrariou o auditório, que em protesto manifestou-se por vaia, uma vez que a preferência era pela música de Geraldo Vandré “Pra não dizer que não falei das flores”.
O clima de contestação ao regime fazia com que o público preferisse as músicas que trouxessem na sua letra mensagens críticas ao regime e “Sabiá” foi compreendida como fora desse contexto, alienada, desvinculada da realidade nacional.
A letra, analisada no momento atual, nos permite enxergar uma visão premonitória de Chico Buarque, autor da letra, pois, meses depois, com a edição do AI-5, ele se veria forçado a viver no exílio, e tudo o que está contido nos versos da música revela a angústia de um exilado que sonha retornar à sua pátria. Foi interpretada pela dupla Cynara e Cybele.
“Vou voltar, sei que ainda vou voltar/para o meu lugar/e foi lá e é ainda é lá/que eu hei de ouvir cantar/ Uma sabiá”. A manifestação do desejo de regresso à sua terra natal feita por alguém que se encontra no exílio. Quando diz que “é lá que hei de ouvir cantar uma sabiá”, nos remete ao poema de Gonçalves Dias, “Canção do exílio”, ao afirmar “minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá”. O pássaro se torna símbolo do Brasil.
“Vou voltar, sei que ainda vou voltar/vou deitar à sombra de uma palmeira/que já não há/colher a flor que já não dá/e algum amor talvez possa espantar/as noites que eu não queira e anunciar o dia”. Contrariamente a Gonçalves Dias, que no seu exílio exaltava uma pátria cheia de prazeres, Chico vê na distância, com tristeza, sua pátria destruída, destroçada. Não existe mais “a sombra da palmeira” nem “flores para colher”. No sentido figurado quis dizer que a situação do país não permitia viver a calma de quem se deita plácida e tranquilamente à sombra de uma árvore, assim como era impossível ver a beleza das flores, porque elas não tinham mais como nascerem. As flores sumiram, ficaram apenas os espinhos. Mas esse amor cívico talvez ainda lhe desse forças para “espantar as noites indesejadas”, a época de trevas em que a nação vivia, e fazer anúncio do raiar de um novo dia. A esperança de que tudo pudesse voltar ao que era antes, embora não houvesse qualquer sinalização de que isso pudesse acontecer proximamente.
“Vou voltar, sei que ainda vou voltar/não vai ser em vão, que fiz tantos planos/de me enganar, como fiz enganos/de me encontrar, como fiz estradas/de me perder/fiz de tudo e nada de te esquecer”. Os planos feitos, muitos deles redundaram em puro engano, mas mesmo assim nada haveriam de ser em vão. Afinal de contas a gente só se encontra ao construirmos nossa própria estrada, ainda que os caminhos que escolhamos possam nos deixar perdidos em alguns momentos. No sofrimento da saudade do seu berço nada do que possa fazer, para minimizar essa dor, consegue levá-lo a esquecer da sua terra.
“Vou voltar, sei que ainda vou voltar/e é pra ficar/sei que o amor existe/não sou mais triste/e a nova vida já vai chegar/e a solidão vai se acabar”. Essa última estrofe foi escrita por Jobim, à revelia de Chico, que manifestou depois sua insatisfação com o texto. Jobim tentava diminuir o risco da censura em relação à letra, ao admitir que o “amor existe e não sou mais triste”, além de expor a esperança de que logo tudo ia melhorar, “a nova vida já vai chegar”, pondo fim à sua situação de exilado. Chico não concordou com esse final.
• Integra a série de crônicas “PENSANDO ATRAVÉS DA MÚSICA”.
