“Tudo outra vez” foi composta por Belchior em 1979, ano em que se deu a Anistia no Brasil, quando muitos dos nossos compatriotas retornaram ao nosso país depois de longo período exilado, em terras estrangeiras, por perseguições políticas da ditadura militar que se instalara nos anos sessenta. Conta a história de um estudante nordestino que regressava enfim ao seu torrão natal, após viver vários anos longe de casa, cheio de saudades.
“Há tempo, muito tempo que eu estou longe de casa/e nessas ilhas cheias de distância/ o meu blusão de couro se estragou”. Ressalta o espaço temporal em que esteve ausente do país, distante do seu povo. Tanto tempo que o seu velho blusão de couro se estragou. Talvez o blusão seja sua única peça da indumentária da época em que militava na política estudantil, participando dos movimentos de rua em contestação ao regime de força implantado no Brasil.
“Ouvi dizer num papo da rapaziada/que aquele amigo que embarcou comigo/cheio de esperança e fé/já se mandou”. Tomou conhecimento em conversas de que o companheiro que com ele partiu para o exílio, com o coração ainda pleno de esperança em mudanças que permitissem seu retorno, já teria morrido. Lamentava que ele não estivesse experimentando a alegria de voltar ao Brasil livre do medo de ser preso.
“Sentado à beira do caminho pra pedir carona/tenho falado à mulher companheira/quem sabe lá no trópico a vida esteja a mil”. Preparando-se para a viagem de regresso, relata à nova companheira a sua expectativa de como as coisas estejam por aqui, “no trópico”. Imagina que “a vida esteja a mil”, com a democracia reiniciando na nossa vida política. O Brasil finalmente se libertando do domínio da ditadura militar.
“E um cara que transava à noite no Danúbio Azul/me disse que faz sol na América do Sul/e nossas irmãs nos esperam no coração do Brasil”. É o momento em que toma conhecimento da “anistia”. “Faz sol na América do Sul”, a noite tenebrosa chegava ao fim, e clareava os horizontes do Brasil. “Nossas irmãs nos esperam”, a afirmação de que familiares e amigos, aguardavam seu retorno.
“Minha rede branca, meu cachorro ligeiro/Sertão, olha o Concorde que vem vindo do estrangeiro/o fim do termo “saudade” com o charme brasileiro/de alguém sozinho a cismar…”. Aqui se identifica como nordestino, colocando características de nossa cultura regional e chama o “sertão” para observar o avião que vem do estrangeiro trazendo-o de volta. A saudade vai ficar apenas como uma lembrança triste do seu tempo de exílio.
“Gente de minha rua, como eu andei distante/quando eu desapareci, ela arranjou um amante/minha normalista linda, ainda sou estudante/da vida que eu quero dar”. Registra a decepção de saber que enquanto desaparecia, sua antiga namorada o esquecia e “arranjava um amante”. Mas se diz “ainda estudante”, da vida que ele um dia quis lhe dar.
“Até parece que foi ontem a minha mocidade/com diploma de sofrer de outra universidade/minha fala nordestina, quero esquecer o francês”. Traz na memória ainda recente a sua mocidade, mas reclama do sofrimento vivenciado na universidade do exílio, e deseja recuperar sua fala nordestina e esquecer o idioma que falou nesse tempo em que esteve fora do Brasil. Na verdade tudo o que quer agora é recuperar sua condição de “filho do nordeste” e reencontrar sua cidadania brasileira.
“E vou viver as coisas novas que também são boas/o amor, humor das praças cheias de pessoas/agora eu quero tudo, tudo outra vez”. Rever sua gente, conviver novamente com o seu povo, ver a alegria das praças. Quer ter tudo isso de volta. “Tudo outra vez”, de forma intensa.
• Integra a série de crônicas “PENSANDO ATRAVÉS DA MÚSICA”
