Eu, Luan Dias, Beiçola e o mundo perdido

Não consigo me conformar com as tragédias diárias estampadas na midia. É como se fosse uma ferida aberta sempre, sangrando, impedindo a conformação, muito menos a banalização do mundo cruel, como se passa na cabeça de muita gente.

Chocou-me nesta quarta-feira a conclusão de nova tragédia com o relato de Luan Dias acusando Beiçola, menor de idade, pelo disparo e morte de uma jovem moça, Patrícia Felipe de Araújo, segunda-feira passada, diante da reação ao assalto a um reles celular. O que era roubo virou latrocínio, agora já sem Patrícia entre nós.

A foto de Luan Dias me pareceu igual a todos os meninos perdidos, não necessariamente pobres (embora esse seja maior no contingente), tantos quanto outros ricos – a exemplo do autor da morte insana dos entes queridos da Família Pordeus Ramalho – cuja dor não pára de sangrar.

São duas situações distintas, até porque no segundo caso, o rapaz está protegido e foragido, mas sem desfazer-se da máxima culpa pela bebedeira nefasta.

No caso de Luan e Beiçola – fico a indagar como a vida humana banalizou-se no inconsciente de pessoas das novas gerações, que faz o crime ser elemento comum na sociedade, tanto faz estar no Rio, no Recife ou na ex-pacata João Pessoa, mesmo pontuando que aqui os índices ainda são menores.

Pior é que nem Beiçola nem Luan entendem, embora sejam culpados a merecer repreensão severa pelos feitos, porque transformar um mero desejo de consumo, como se daria com o uso do celular, mas, pior, à custa de uma vida – cujo valor só os familiares e amigos de Patrícia podem dimensionar.

Ao tempo que se faz necessária a punição à altura do delito, ainda assim há uma parte que cabe na direção do futuro (e sempre) voltada à responsabilidade da família, dos pais que já não sabem como conviver com os anseios de seus filhos – nem se importam com a profundidade do teor “Meu Guri”, canção de Chico Buarque retratando a banalização do crime entre jovens.

De qualquer forma, não aceito o argumento simples de que a origem está na pobreza, que sempre existiu e sempre se existirá na maioria com dignidade, mesmo diante das intempéries e desníveis sociais.
Eu, próprio, já vivi momentos de muita dificuldades sem precisar desviar-me do caminho porque, felizmente, tive o amparo zeloso de uma mulher chamada Maria Júlia (minha saudosa mãe), timoneira da cidadania optando pela educação de seus filhos (Duda é outro mano), logo cedo gerando ‘doutores’na sabedoria por trocarem a vida fácil nos bairros e suburbios pelo dureza dos estudos transformadores na sala de aula.

É esta (a educação) – a única solução real para tirar outros Luans e Beiçolas do caminho da perdição. Mas, também em casos parecidos e futuros, precisamos de mais Marias Júlias e Antonios fazendo o papel de educador voluntário conduzindo os filhos para a maior da usinas do mundo, as escolas.

Está certo que muitos têm a opção e não querem desfrutar dela, mas também nesses casos, só o dialogo em busca do convencimento pela educação pode construir um futuro menos ruim para os jovens perdidos.

O Meu Guri
Chico Buarque

Composição: Chico Buarque
Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar
Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando, não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar
E na sua meninice ele um dia me disse
Que chegava lá
Olha aí
Olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega

Chega suado e veloz do batente
E traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega

Chega no morro com o carregamento
Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos tá um horror
Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar
De repente acordo, olho pro lado
E o danado já foi trabalhar, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri
E ele chega

Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço?
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá
Olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri

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