Internet e vida estão se confundindo, diz especialista Ronaldo Lemos

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Redes de criar pessoas solitárias

Por Jhonattan Rodrigues

Ambrose Bierce, já no século XIX, em seu Dicionário do Diabo, definia o verbete Telefone como “uma invenção do diabo para revogar alguns dos benefícios de manter uma pessoa desagradável distante”. Provavelmente, se vivesse nos dias atuais, Bierce não seria muito fã de smartphones e de redes sociais, mas ainda assim não deixaria de usá-las. Curiosamente, é corriqueiro encontrar pessoas que criticam as redes sociais reclamando que gostariam de passar menos tempo usando o celular, mas são os primeiros a sacarem os smartphones na roda de amigos. “A crítica a produtos e serviços da internet que são “viciantes” acontece no nível discursivo, isto é, podemos falar sobre ela e compreendê-la. Só que essa compreensão em si não é suficiente para uma mudança de hábitos nem é capaz de evitar a compulsão por determinados tipos de uso da rede”, explica Ronaldo Lemos.

Lemos, advogado por formação, é diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio), e mantém colunas na Folha de São Paulo, na Revista Trip e no programa Expresso Futuro, no canal Futura, todos com o tematecnologia. Por e-mail, Lemos conversou com a NORDESTE sobre a relação das pessoas com a (quase) onipresente internet. Ele acredita que diferentemente de outras tecnologias, como a televisão, o cinema e os videogames, a internet é a “mídia de todas as mídias”, capaz de se tornar muito mais presente na vida das pessoas, por isso exige uma atenção maior. Para além dos esforços individuais (como escolher um dia na semana para se desligar de tudo), é necessário repensar como os serviços de tecnologia são oferecidos. 

Apesar do especialista reconhecer a necessidade de uma revolução de dentro para fora nos indivíduos, a forma como a própria sociedade moderna se estruturou em torno da tecnologia desencoraja indivíduos isolados que queiram “se desligar”. Movimentos como o “slow media” (uma busca por diminuir o nível de informação que consumimos) , que Lemos abordou no artigo “Sereias Digitais”, se tornam simplistas em torno de uma estrutura complexa que é o “mercado de atenção” que são os negócios online. “Não é só uma mudança no plano do indivíduo, mas tem de passar por mudanças de design ou mesmo mudanças sociais”, afirma. “Estamos imersos em um processo de aceleração cada vez mais acentuado. O problema dele é que quem não acelerar também vai ficando para trás […] isso aumenta profundamente a desigualdade”. 

É tanto que já se fala até em escolas em que os pais pagam caro para que os filhos fiquem longe da tecnologia. Ironia, em um mundo onde o que mais se discute na educação são formas de fazer a tecnologia adentrar nas escolas. São dois mundos que coexistem: para uns a tecnologia é um problema; para outros, a solução. 

Revista NORDESTE: Por que as pessoas criticam tanto a relação da sociedade atual com a internet, mas não conseguem ignorar uma notificação no celular?

Ronaldo Lemos: Trata-se do conhecido fenômeno do “é mais fácil falar do que fazer”. A crítica a produtos e serviços da internet que são “viciantes” acontece no nível discursivo, isto é, podemos falar sobre ela e compreendê-la. Só que essa compreensão em si não é suficiente para uma mudança de hábitos nem é capaz de evitar a compulsão por determinados tipos de uso da rede. Nesse sentido, por mais que sejamos capazes de compreender a dinâmica de captura da nossa atenção por meio de uma notificação de celular no nível consciente, nosso cérebro torna-se praticamente condicionado do ponto de vista subconsciente para responder a ela. Para lidar com esse tipo de condicionamento, a mudança tem de ser mais profunda. Ela não é só uma mudança no plano do indivíduo, mas tem de passar por mudanças de design ou mesmo mudanças sociais.

Ilustração: André Dahmer

NORDESTE: O jornalista Michael Harris, no livro “The End of Absence”, explica que gerações que já nasceram na era da internet não conhecerão momentos de solidão, tédio e ócio, pois estarão sempre hiperconectadas. Isso é algo bom ou ruim?

Lemos: É um ponto curioso, mas não é exatamente preciso. Muitos serviços da internet são máquinas de produzir solidão e frustração. Por mais conectados que possamos estar, estamos sempre insatisfeitos e procurando por algo mais. De fato, esses serviços geram uma ocupação permanente para nossas capacidades mentais. O número de conteúdos, fotos e textos para ler é infinito. No entanto, ninguém está satisfeito. Acabamos voltando o tempo inteiro para esses serviços a procura de mais alguma coisa, de um momento que poderá gerar satisfação plena, que nunca vai acontecer.

NORDESTE: Visões pessimistas em relação à tecnologia não seriam fruto de uma geração diferente? A preocupação com a internet não se assemelha de alguma forma como o cinema, a televisão e outras tecnologias foram recebidas?

Lemos: Sim, é preciso evitar qualquer tipo de pânico moral. Sempre que há a emergência de mídias novas, seja o cinema, a TV, os games, há também o surgimento de pânicos morais. A questão é que a internet é a mídia de todas as mídias. Mais do que isso, é uma mídia que permite agir ao mesmo tempo em que é consumida. Enquanto o cinema ou a TV são consumidos em posição de repouso, a internet é consumida cada vez mais como parte da vida cotidiana, em todos os espaços em que a vida acontece e até mesmo enquanto estamos fazendo outras coisas. Nesse sentido, vale uma atenção especial, porque internet e vida estão se confundindo e se tornando uma coisa só. O que acontece com a internet muda completamente nossas vidas, de forma imediata.

NORDESTE: O uso exageradoda tecnologia não seria um reflexo da sociedade frenética que vivemos?

Lemos: Uma coisa alimenta a outra. A internet é produto de uma sociedade que se acelerou, mas é também um fator determinante dessa aceleração. O Fórum Econômico Mundial gosta de dizer que estamos vivendo uma 4a revolução industrial. Além disso, estamos imersos em um processo de aceleração cada vez mais acentuado. O problema dele é que quem não acelerar também vai ficando para trás. Se só alguns aceleram, os demais ficam para trás e isso aumenta profundamente a desigualdade. Esse ponto não pode ser ignorado. É impossível fazer com que todos acelerem ao mesmo tempo.

NORDESTE: Por que as pessoas em geral parecem não dar atenção ou não levar a sério temas tão importantes como segurança, privacidade e direitos na internet?

Lemos: São temas difíceis de compreender, mas cada vez mais importantes. Cada vez mais vamos vivenciar “ciberataques” capazes de paralisar funções básica dos computadores, da internet e por consequência, da vida. Além disso, hoje há muito pouco que o indivíduo pode fazer sozinho com relação a esses temas. Privacidade e segurança tornaram-se temas relevantes para o nível nacional e também internacional. É preciso que o poder público organize-se para proteger os cidadãos com relação a eles.

NORDESTE: E como lidar com o paradoxo mais segurança/ menos privacidade?

Lemos: Essa é uma falsa dualidade. Não podemos ser forçados a optar entre segurança e privacidade. Uma coisa de depende da outra. A privacidade é uma elemento essencial para garantir a segurança. Por isso a importância da criptografia.

NORDESTE: No artigo “SereiasDigitais”, você afirma que uma solução para o “comércio de atenção humana”, seria encarecer esse produto. Você poderia falar mais sobre essa ideia e porque você acredita que o movimento “slow media” é pouco eficaz?

Lemos: A mineração da atenção humana (se é que podemos chamar assim) é altamente ineficiente. É preciso capturar vastas quantidades de atenção para conseguir produzir algum dinheiro. Nesse sentido, a atenção é o elemento mais barato da vasta cadeia que foi criada para explorá-la. Vai ser cada vez mais importante valorizar novamente essa atenção. Esse é um ato de humanismo. Ter alguém prestando atenção em algo é valioso e isso precisa ser refletido economicamente.

NORDESTE: No mesmo artigo você fala em escolas onde há o mínimo ou nada de tecnologia. Não é contraditório haver escolas assim, quando uma das discussões da educação hoje é como tornar as escolas mais integradas com a tecnologia?

Lemos: É totalmente contraditório. Sou um ardoroso defensor da tecnologia nas escolas. Acho que as escolas desconectadas são buscadas justamente por famílias que já têm conexão demais, como por exemplo as famílias de funcionários que trabalham com tecnologia no Vale do Silício. Para a maioria absoluta das pessoas, a tecnologia é na verdade uma oportunidade. Nesse sentido, venho trabalhando há anos para conectar todas as escolas do país em banda larga de alta qualidade. É o que falei antes: se só uma parcela da sociedade está acelerando, por ter contato com a tecnologia, quem não tem vai ficando para trás. Conectar todas as escolas em banda larga vai permitir reduzir essa desigualdade e ampliar oportunidades. Quem gosta de escola desconectada é porque já tem conexão demais.

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