Censura clerical e guerra cultural

Padre Júlio Lancellotti
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

O padre Júlio Lancellotti costuma utilizar as plataformas digitais para denunciar a violência e a intolerância, registrando em suas publicações o cotidiano das pessoas em situação de rua no centro da capital paulista. Por isso mesmo, tem sido alvo recorrente de ameaças e de acusações desprovidas de materialidade, numa tentativa deliberada de submetê-lo a um ambiente de linchamento moral.

O episódio mais recente dessa ofensiva foi a carta do cardeal arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, determinando a proibição do uso das redes sociais pelo sacerdote e comunicando, inclusive, a possibilidade de sua transferência da Paróquia São Miguel Arcanjo, onde atua há mais de quatro décadas.

A decisão, amplamente considerada arbitrária, provocou forte repercussão entre religiosos e fiéis, uma vez que o padre sempre dedicou sua ação pastoral à vivência concreta dos ensinamentos de Jesus Cristo, promovendo acolhimento e cuidado às pessoas em situação de rua. Sua preocupação permanente em proteger os mais vulneráveis — especialmente aqueles que a sociedade insiste em não enxergar — tem despertado a ira de setores conservadores.

Em razão disso, o padre Júlio Lancellotti passou a ser alvo frequente de ataques de lideranças políticas alinhadas à extrema direita. Foi o que se viu, por exemplo, na iniciativa do deputado federal Junio Amaral (PL-MG), que chegou a encaminhar à Embaixada do Vaticano um abaixo-assinado pedindo o afastamento do religioso.

No mesmo sentido atua Miguel Kazam, ligado ao MBL (Movimento Brasil Livre) e com mais de 100 mil seguidores nas redes sociais, que há meses conduz uma campanha sistemática de ataques ao sacerdote e de pressão pública sobre a Igreja. Em vídeos e postagens, associa a atuação pastoral de Lancellotti a supostos desvios morais e ideológicos, misturando críticas religiosas com narrativas políticas típicas da chamada “guerra cultural”.

Essa limitação imposta ao padre Júlio Lancellotti tem nome: censura. Ao agir dessa forma, a Igreja Católica desconsidera a relevância da conexão estabelecida pelo sacerdote com mais de dois milhões de seguidores, cujas missas alcançam cerca de 15 mil visualizações a cada transmissão ao vivo. Trata-se, portanto, de um grave retrocesso democrático, por envolver diretamente a liberdade religiosa e a liberdade de expressão.

A contradição se torna ainda mais evidente quando se observa que o próprio arcebispo segue ativo nas redes sociais, mantendo no Instagram um perfil com mais de 50 mil seguidores, onde publica notícias institucionais e trechos de suas homilias.

Não há justificativa plausível para essa proibição. O padre Júlio Lancellotti é uma figura pública admirada em todo o país — e também no exterior — pelo trabalho desenvolvido ao lado dos excluídos. Outros religiosos com perfis midiáticos, verdadeiros “pop stars”, jamais foram alvo de medida semelhante.
A Arquidiocese de São Paulo, por sua vez, limita-se a afirmar que o tema foi tratado internamente entre dom Odilo e o sacerdote, recusando-se a prestar esclarecimentos públicos.

Esse enquadramento canônico imposto a um religioso cuja espiritualidade é profundamente comprometida com a dignidade humana abre um precedente perigoso: o da criminalização da ação pastoral voltada aos pobres e do diálogo com a sociedade.

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