Por Durval Leal Filho
O mundo sempre foi dela. Antes das primeiras palavras, antes do tempo desenhado em linhas e signos, a mulher já traçava o invisível, o inconcebível, o incansável. Na origem, Eva não foi apenas a primeira tentada, mas aquela que sabia exatamente o que fazia ao escolher a serpente. Sua mordida não corrigia apenas o erro do Éden, abria passagem para o futuro, um futuro de códigos da vida espalhados em formas múltiplas, onde o humano deixava de ser mero traço no barro para ser um enigma complexo, inscrito no DNA, conectado à máquina e ao espírito.
O homem construiu suas ferramentas, suas cavernas, sua história de ferro e pedra. Mas foi a mulher quem viu além do carvão preto e do vermelho exposto. A cor vermelha requisitada para os desenhos nas cavernas não foi mero capricho, foi um grito de vida, uma sensação de quem sangra, um sinal para eternizar sua presença em meio à violência e ao tempo. Essa marca, sob o olhar atento das mulheres que a preservaram, que pintaram e esculpiram, anunciava uma promessa silenciosa: o mundo seria redesenhado, um mundo onde elas comandariam o silêncio e a palavra, o espírito e a carne.
As grandes muralhas da Serra da Capivara, no Piauí, documentadas pela arqueóloga Dra. Niely Guidon, guardam esse pacto antigo. É ali que se preserva a história que os livros muitas vezes não contam. Desde então, as mulheres detêm o dom da preservação, da resistência, da reescrita do mundo. Salvaram não apenas os frágeis corpos dos primeiros humanos, mas o próprio futuro da humanidade, escolhendo, criando, dominando, ainda que silenciosamente gritando.
Hoje, essa escolha assume outra linguagem. O mundo já não pertence aos verbos, às falas e aos discursos que se esvaem no ar. É das imagens, da presença visual. E a imagem que realmente plasma a existência moderna é feminina, essa força que desafia, que interroga, que desmonta as certezas do homem, ele mesmo prisioneiro de seu desejo e vaidade.
O homem vive na ilusão do poder. Imagina que sua imagem, seus conhecimentos superficiais, sua presença carnal bastam para sustentar seu ser. Enquanto isso, a mulher, em sua silenciosa sabedoria, compreende que o convencimento é uma arte feminina, um exercício de essência, sentimento e transformação. Ela não precisa gritar para ser ouvida. Apenas está. E nessa presença se revela uma força maior que o aço das armas e a rigidez das regras.
Ela faz a diferença. Ela é a maioria. Não só na Letônia ou em qualquer canto do mundo, mas no cerne do que significa existir e resistir. Mulheres inteligentes escolhem seus pares, homens capazes de compreender e se entregar a essa complexidade sem medo. Normalmente buscam homens francos no domínio, para que possam exercer a força que só elas possuem, aquela força bruta e necessária que abre caminhos e decisões que o mundo exige.
Porém, o maior dom das mulheres não está somente no palpável. Está nos seus códigos genéticos, humanos e além. Esses códigos não são dados binários, nem streaming superficial. São profundos, indecifráveis, tecido invisível que liga gerações e existências, criando a presença feminina como uma determinação ancestral, incontestável.
Na presença da mulher há poder. Na sua essência reside o princípio do feminino, esse elemento que desafia e sustenta tudo o que conhecemos, que nos lembra que não se trata apenas de vida ou morte, sangue e ferro, mas de algo infinitamente maior.
“Não sou feminista, sou feminina. O feminismo é uma política, o feminino é um mistério.”
Clarice Lispector vê o feminino não como algo fixo, conformado, mas como uma essência inquieta, uma busca constante dentro do vasto vazio e da plenitude do ser.
Essa frase me fez mergulhar nesse universo, em uma luz indecifrável de Clarice, ou porque tinha pouco conhecimento da sua literatura, apenas como um clandestino, o seu ser feminino me fez ganhar um silêncio vibrante, perceber a intensidade no que não se diz, mas que se sente. Tive oportunidade de perceber Clarice inicialmente através do curta-metragem “Clandestina Felicidade”, de Marcelo Gomes, uma livre adaptação da escritora que viveu em Recife.
Clarice nos conduz ao âmago do feminino como experiência do mistério e da criação, um espaço onde o tempo se dissocia e o instante se torna eternidade. O feminino é silêncio e grito, luz que perfura a noite da existência, palavra que fala sem falar, um sentimento imenso e inexplicável que rompe as correntes do racional e do bruto.
“Pinto-me para me proteger do mundo. A maquiagem é o meu escudo de guerra.”
Assim como sua prosa, que flui entre o visível e o invisível, o feminino permanece indomável, revivendo no corpo, no olhar, no gesto, moldando armaduras, no silêncio que diz tudo. Deus salve as deusas; elas, no meu imaginar, no encontro derradeiro, serão com uma mulher, mostrando os mistérios que carregam, as forças escondidas no cotidiano, nos passos calmos e firmes que desenham o futuro.
Esse é o mundo delas, um mundo onde comandam o tempo, o espaço, a vida, sem precisar de palavras para comprovar sua força. São deusas em carne e espírito, guardiãs dos códigos e das imagens, seres que sempre foram e sempre serão o princípio, o meio e o fim. São Aracnes, Parcas e Moiras — elas tecem e dão destinos.
Este é o poder da mulher, aquele que transcende a história para habitar o mistério da existência, onde seu grito reside no silêncio e sua palavra é a alma pulsante do universo. A mulher não apenas vive no mundo, ela é o mundo, em sua dimensão mais extensa e profunda, onde começamos a entender o que verdadeiramente significa ser e resistir.
A Walter Santos… Só me imagino com elas, assistindo-as brilharem. Obrigado.
