Essa é uma pergunta que não me deixa calar. Votamos pela democracia, dizem. Votamos pela melhoria dos “direitos desumanos”, porque os humanos andam cada vez mais escassos, e por uma convivência minimamente decente entre seres no espaço urbano. Votamos, talvez, pelo senso democrático, social, cultural. Mas, afinal, por que, ainda, votamos!?
Hoje sabemos quem são os políticos que ocupam as legislaturas municipais, estaduais e federais. São, em boa parte, coniventes, convenientemente comprados, convocados e convencidos a partilhar de toda sorte de maracutaias, sempre, é claro, em benefício de seus senhores patrões. E quem são esses patrões? Ora, os novos barões do século XXI: as BETs das jogatinas, que diminuem a qualidade de vida do cidadão pobre enquanto multiplicam os lucros dos donos do jogo.
Os senhores políticos, trajando seus jalecos de autoridade, distribuem poder às corporações para que explorem à vontade o bem público. Basta olhar o que acontece no sistema elétrico: penduram-se “jabutis” e benesses em cada projeto, como enfeites de uma árvore de Natal da esperteza nacional. Tudo é negociável, da energia à dignidade, desde que alguém leve vantagem. Porque, afinal, por que, ainda, votamos!?
Talvez um bom exemplo venha da cidade de João Pessoa. Ali, a Câmara de Vereadores insiste em brincar de roleta legislativa: vai e volta, tentando derrubar uma lei constitucional que protege uma das orlas mais belas e bem cuidadas do país. Uma orla viva, espirante, que não permite paredões de espigões nem sombras sobre a praia. Uma lei que garante ao cidadão o direito de ver o mar, o mínimo respiro diante do concreto que sufoca as cidades.
Mas, claro, nossos vereadores, esses verdadeiros filantropos da construção civil, querem “ajudar”. Dar uma mãozinha aos empreiteiros, como bons servidores do capital. Não defendem o bem público, nem o direito do cidadão: defendem seus próprios negócios. E fazem isso com a habilidade de uma peçonha bem treinada, venenosa e insistente. Entre eles, há quem diga que “museu não serve pra nada”, afinal, a memória é inútil para quem vive de apagar rastros. Outros, mais pragmáticos, compactuam com facções criminosas em troca de votos.
Eis a bandeja da democracia tropical: um coquetel de maldades e arbítrios temperado com esquecimento coletivo. É assim que cresce a “mãe democracia”, nutrida pelo voto de um cidadão que já não sabe, nem lembra, em quem votou nas últimas eleições.
Enquanto isso, o Supremo Tribunal Federal, em sua torre de marfim, interfere em tudo. Libera réus confessos, aqueles mesmos que devolveram milhões aos cofres públicos e ainda saem posando de vítimas. Um deles, inclusive, devolveu cem milhões de reais, mas foi “absorvido” (ou seria “absolvido”?) por um toque divino da toga. E o Presidente da República? Ah, ele sabia de tudo. De todos. Mas, como a justiça anda mais filosófica, o importante é perdoar. A culpa sempre será do usuário não do traficante. Um edificante epitáfio presidencial.
A grande guerra, no entanto, não está sendo travada nos palácios. Está sendo perdida nas cidades pequenas, onde o tráfico comanda, cobra taxas, expulsa, mata, açoita e, por censura decente, nem é preciso dizer o resto. Não se trata apenas de vender drogas, mas de dominar territórios. Só que, para o governo federal, esses grupos não são narco terroristas. São “traficantes acuados” pelos próprios cidadãos, os viciados. Foi assim mesmo que o Presidente definiu, com toda a serenidade de quem vê o caos e chama de paisagem.
Do outro lado, trava-se uma guerra mais silenciosa, mas igualmente suja: a dos defensores da Constituição. Aqueles que se dizem os protetores da Carta Magna, desde que ela proteja os seus. Lutam para derrotar a Lava Jato, devolver à corrupção o prestígio perdido e restaurar as benesses do poder. Querem, em nome da “legalidade”, tornar lícito o que foi confessadamente ilícito. E assim, sob o argumento de que o processo teve “excessos”, absolvem ladrões confessos, restauram privilégios, “institutos”, que instintos!?
E voltamos à pergunta que ecoa, teimosa, entre o sarcasmo e o desespero: por que, ainda, votamos!? Talvez votemos porque ainda acreditamos em algum resquício de esperança. Ou porque o sistema precisa da nossa digital para continuar girando a engrenagem. Talvez votemos porque a propaganda é boa, o santinho é colorido e o churrasco do comício é de graça. Ou porque, no fundo, o voto é a ilusão mais bem produzida do país, aquela que transforma o cidadão em cúmplice e o corrupto em representante.
Enquanto isso, os poderes constituídos seguem firmes, tramando entre si, alimentando vaidades, empobrecendo a alma nacional e dissolvendo o que restava da moral pública. No fim, tudo se resume a isso: uma grande facção chamada República Federativa do Brasil, com seus conluios espúrios, onde cada poder se acha dono da verdade e todos dividem o mesmo botim.
E o povo? O povo vota. Vota, cala, esquece, e volta a votar. Porque, afinal, por que, ainda, votamos!? E decretam: “Agora é justo perdoar”. Desde que venham benesses aos nossos “institutos de doutos saber”