Em João Pessoa, onde passa os festejos de fim-de-ano, o cidadão global Carlos Vieira, presidente da CEF e exímio cultor da literatura, tem sido visto em produção permanente de Crônicas do cotidiano de memória. Na ultima produção, ele lembra do personagem que marcou parte de sua vida no bairro da Torre, na capital paraibana.
Ele não só reafirma “Porque hoje é sábado!”, como indaga aos leitores/
“Quando foi a última vez que mandou consertar um sapato?” Para ir a fundo nas memórias do sapateiro:
O sapateiro da Bento da Gama
A rua se chama Bento da Gama. É longa — quase uma avenida — e cruza, de forma extensa, a artéria que conduz o trânsito do bairro de Jaguaribe até o coração da Avenida Epitácio Pessoa. Longa, mas ao mesmo tempo estreita, parecia um desenho arquitetado por algum açoriano distraído com a própria régua.
Nessa rua ficava a oficina de um exímio sapateiro.
Não foram poucas as vezes em que me dirigi àquele pequeno templo do conserto. Levava sapatos e sandálias — meus ou de minhas irmãs — quase sempre a precisar de reparos. Não sei dizer se a causa era a baixa qualidade dos produtos ou a quantidade de pares em circulação numa casa cheia de pés apressados. Talvez ambos.
O que me encantava era a destreza do sapateiro. A habilidade no manuseio da tesoura, da faca sempre amolada e do martelo impressionava. A batida do martelo na brocha, selando a sola ao corpo do sapato, seguia um ritmo compassado — tão compassado quanto as discussões dos asseclas que orbitavam aquele líder silencioso. Entre uma martelada e outra, alternavam-se os diálogos sobre futebol e política, sempre tratados com a solenidade que o ofício exigia.
O aroma da cola do sapateiro selava as conversas, emprestando coerência a opiniões que, por vezes, só se sustentavam no torpor embriagante daquele produto químico — hoje interditado.
O pé de ferro, de três faces e uma quarta em coto, era uma peça indestrutível. Um monumento à permanência. Entre os frequentadores, destacava-se uma figura de voz rouca e, pelo que me lembro, vascaíno convicto. Morava numa casa simples e conjugada, logo em frente à oficina do mestre.
Com o passar do tempo, fui percebendo o declínio da atividade. Já não havia o vasto estoque de pares à espera de conserto. Na mesma época, multiplicavam-se as lojas e sapatarias pela cidade. Surgia também a primeira loja de departamentos — chamava-se GranPires. Tudo começava a se tornar descartável. A moda passava a ditar o gosto. Milão era aqui.
Não sei que fim levou o nosso sapateiro, nem seus outrora imprescindíveis instrumentos. Do que foi, resta apenas a lembrança: um tempo em que o dia passava ao som ritmado das batidas do martelo na sola do sapato — e em que consertar ainda fazia mais sentido do que substituir.
