Rui Leitão

Jornalista e escritor.

Política

“O BÊBADO E A EQUILIBRISTA”


31/10/2023

João Bosco e Aldir Blanc juntos no estúdio (Foto: Divulgação)

O Brasil já experimentava 14 anos do regime ditatorial quando João Bosco e Aldir Blanc compuseram “O bêbado e a equilibrista”. Essa música, gravada na voz de Elis Regina, em 1978, cheia de metáforas, é mais uma das inúmeras canções com mensagens subliminares de protesto contra o governo militar, sempre registrando a esperança de que o país voltasse a viver os ares da democracia.

“Caía a tarde feito um viaduto/e um bêbado trajando luto/me lembrou Carlitos”. Naquele tempo as tardes eram mais curtas em razão dos toques de recolher impostos pela ditadura. Os autores usam o episódio inesperado da queda do viaduto Paulo Frontin, no Rio de Janeiro, para referenciar a rapidez com que as tardes caíam durante o período do regime limitar. Reinava o medo. A classe artística e os intelectuais, são simbolizados pela figura de um bêbado, embriagados pela vontade de lutarem pela liberdade, ousavam provocar as forças militares com sua produção cultural. Nessa estrofe, eles procuram também homenagear a memória de Charlie Chaplin, morto em 1977, ao lembrar a figura de Carlitos, um dos seus mais conhecidos personagens.

“A lua, tal qual a dona de um bordel/pedia a cada estrela fria/um brilho de aluguel”. A lua representava a classe política civil, que, assim como uma dona de bordel, assistia passivamente, e até contribuía, com os crimes que se cometiam à vista deles. E compara o brilho emprestado que a lua tem, ao prestígio que eles tomavam como “de aluguel” aos militares, sempre visando atender seus interesses e vantagens pessoais.

“E nuvens!/Lá no mata-borrão do céu/chupavam manchas torturadas/Que sufoco!/Louco!”. Pairavam sobre todos nós nuvens ameaçadoras, onde a prática da tortura era frequente nos porões da ditadura, massacrando nosso povo. Na minha concepção “o mata-borrão do céu” era a Igreja Católica que, tentando se redimir dos erros cometidos quando apoiou o golpe em 1964, agora procurava apagar as manchas, os tormentos, causados pelos que governavam nossa pátria. Eram momentos em que o desespero nos dominava, ficávamos as vezes sem acreditar que houvesse uma saída. Uma loucura.

“O bêbado com chapéu-coco/fazia irreverências mil/pra noite do Brasil/meu Brasil!”. O mundo cultural não se intimidava e desacatava os poderosos de plantão, na vontade de fazer com que a “noite” em que estávamos mergulhados acabasse, e surgisse o sol de um novo dia. Toda uma luta corajosa por um Brasil melhor, livre da tirania e da opressão.

“Que sonha com a volta do irmão do Henfil/com tanta gente que partiu/num rabo de foguete”. Todos nós sonhávamos com a volta dos compatriotas que foram expatriados porque discordavam do pensamento político dos ditadores. Entre eles Betinho, o irmão de Henfil. Muita gente foi embora, alguns fugindo com medo, outros expulsos, e vários desaparecidos sem que se soubesse seus destinos.

“Chora!/A nossa pátria, mãe gentil/Choram Marias e Clarisses/no solo do Brasil”. O Brasil chorava por seus filhos sucumbidos pela sanha criminosa dos ditadores. Os compositores usam um verso do nosso hino nacional para dar mais ênfase ao sentimento patriótico, quando dizem: “a nossa pátria, mãe gentil”. Lembram quantas esposas choraram as mortes de seus maridos, e tomam como exemplos Maria e Clarisse, respectivamente as companheiras do metalúrgico Manoel Filho e Vladimir Herzog, que foram assassinados covardemente.

“Mas sei que uma dor assim pungente/não há de ser inutilmente/a esperança…”. Esse padecimento, essa batalha, muitas vezes inglória e sacrificada, não poderia ser inútil. Nela residia a esperança de que a noite tenebrosa desapareceria e amanheceria o clima de liberdade, o exercício pleno da democracia.

“Dança na corda bamba da sombrinha/e em cada passo dessa linha/pode se machucar”. O enfrentamento audacioso é um exercício de equilíbrio na corda bamba, qualquer vacilo pode ser fatal. Cada passo é um risco. O importante é que, em nome da causa, não tenha medo de se machucar.

“Azar!/A esperança equilibrista sabe que o show/de todo artista tem que continuar…”. Embora exposta ao risco de cair, a equilibrista, nesse contexto a política contrária ao governo, deveria continuar seus projetos sem perder a esperança da vitória. Afinal de contas todo artista precisaria saber da sua responsabilidade no objetivo de ser mais um contribuinte na força de luta em favor da retomada da democracia.

Do livro CANÇÕES QUE FALAM POR NÓS, editado em 2015


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