Paraíba

A Leitura como Ponte para a Liberdade: O Impacto da Remição da Pena e o Projeto LIBERTCE na Paraíba – Por Carlos Pessoa Aquino


02/06/2025



A privação de liberdade impõe um desafio complexo à sociedade: como conciliar a punição com a possibilidade de ressocialização? Nesse contexto, a leitura emerge como uma ferramenta poderosa, capaz de não apenas proporcionar a remição da pena, mas também de abrir portas para a transformação pessoal e a reintegração social. Na Paraíba, o projeto LIBERTCE da Escola de Contas Conselheiro Otacílio Silveira (ECOSIL) do Tribunal de Contas do Estado (TCE-PB) se destaca como um exemplo inspirador dessa iniciativa.

A remição da pena pela leitura é um direito previsto na Lei de Execução Penal (LEP) que permite aos apenados reduzir parte de sua condenação por meio da dedicação aos livros. Essa medida não é meramente um benefício, mas um reconhecimento do valor intrínseco da educação e do conhecimento no processo de reconstrução de um novo caminho. Ao se envolverem com a leitura, os indivíduos em privação de liberdade têm a oportunidade de expandir seus horizontes, desenvolver o pensamento crítico, aprimorar a linguagem e, fundamentalmente, vislumbrar um futuro diferente. É a chance de um “tempo de pena” ser também um “tempo de aprender”.

A remição da pena pela leitura no Brasil permite que o apenado obtenha a remição de quatro (04) dias de pena por cada obra literária lida. Existe um limite de doze (12) obras lidas por ano, o que significa que o máximo de dias que se pode remir a pena pela leitura anualmente é de 48 dias (12 obras x 4 dias/obra). É importante notar que essa modalidade de remição está prevista na Lei de Execução Penal (LEI Nº 7.210, DE 11 DE JULHO DE 1984.)  e detalhada pela Resolução nº 391/2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que estabelece os procedimentos e diretrizes para o reconhecimento desse direito. Para que a remição seja concedida, o apenado geralmente precisa apresentar um relatório de leitura ou resenha da obra.

Desde 2019, o projeto LIBERTCE da ECOSIL tem sido um pilar fundamental para concretizar essa visão no sistema prisional paraibano. A iniciativa vai além da simples distribuição de livros: ela leva obras didáticas e literárias para as unidades prisionais, criando um ambiente propício à educação e ao desenvolvimento cultural dos apenados. Essa ação é crucial, pois muitas vezes, o acesso a materiais de leitura é um dos maiores desafios enfrentados dentro do sistema carcerário.

O impacto do LIBERTCE é multifacetado. Primeiramente, ele democratiza o acesso ao conhecimento, permitindo que pessoas em situação de vulnerabilidade educacional tenham a chance de aprender e se qualificar. Em segundo lugar, a leitura de obras literárias oferece uma fuga temporária da realidade opressora do cárcere, promovendo bem-estar mental e emocional. A literatura aguça a sensibilidade, estimula a imaginação e pode ser um espelho para a reflexão sobre valores e condutas. Por fim, e não menos importante, o projeto colabora diretamente com o processo de remição da pena, incentivando os apenados a buscar na leitura uma forma legítima de acelerar seu retorno à sociedade.

O sucesso do LIBERTCE é um testemunho do poder da colaboração entre instituições e da crença na capacidade de transformação humana. Ao investir na educação e na cultura dentro do sistema prisional, o TCE-PB, através da ECOSIL, demonstra que a responsabilidade social transcende as fronteiras das suas atribuições precípuas, impactando diretamente na vida de indivíduos e contribuindo para uma sociedade mais justa e com menos reincidência criminal. A leitura, nesse contexto, deixa de ser um mero passatempo e se torna um instrumento de empoderamento e esperança. É um convite à reflexão, à construção de um novo repertório de ideias e, em última instância, à reconstrução de um novo projeto de vida.

O Mecanismo da Remição pela Leitura e Seus Benefícios Psicológicos

A remição da pena pela leitura não é um mero formalismo burocrático; ela se baseia em um processo pedagógico estruturado. Para que a remição seja concedida, o apenado deve ler uma obra literária ou didática, apresentar um relatório de leitura ou resenha e, em alguns casos, passar por uma avaliação oral. A cada livro lido e comprovado, são subtraídos alguns dias de sua pena. Esse sistema não apenas incentiva a leitura, mas também desenvolve habilidades essenciais como compreensão textual, escrita, interpretação e argumentação. Tais competências são cruciais para a reintegração social e para a busca de novas oportunidades após o cumprimento da pena.

A avaliação do relatório de leitura ou resenha para fins de remição da pena é um processo que envolve diferentes atores, garantindo a lisura e a eficácia do benefício. Conforme a Resolução nº 391/2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que regulamenta a remição de pena por meio de práticas sociais educativas, incluindo a leitura, a responsabilidade pela avaliação recai principalmente sobre a Comissão de Validação ou Equipe Pedagógica da Unidade Prisional. Essas equipes, formadas por educadores, bibliotecários ou outros profissionais capacitados, são as responsáveis por analisar a qualidade e a coerência do relatório ou resenha, verificando a compreensão real da obra. Após a avaliação, o relatório e o parecer são encaminhados ao Juiz da Execução Penal responsável pelo caso do apenado, que em última instância, homologa a remição.

Além dos benefícios práticos na redução da pena, a leitura exerce um profundo impacto psicológico sobre os indivíduos em privação de liberdade. O ambiente carcerário é marcado por estresse, isolamento, tédio e, muitas vezes, pela perda de identidade. A leitura atua como um refúgio mental, transportando o leitor para outros mundos, culturas e realidades. Isso pode aliviar a ansiedade, combater a depressão e oferecer uma perspectiva diferente sobre a própria condição. Através dos personagens e suas jornadas, os apenados podem encontrar identificação, inspiração e até mesmo desenvolver a empatia, um sentimento fundamental para a ressocialização. A oportunidade de aprender, de se aprofundar em temas de interesse ou de simplesmente desfrutar de uma boa história contribui para a preservação da saúde mental e para a manutenção de um senso de propósito, algo que é frequentemente corroído pelo encarceramento.

Adicionalmente, a leitura em grupo, quando possível, pode fomentar a interação social positiva e a troca de ideias entre os apenados, criando pequenos clubes de leitura ou rodas de debate. Essas atividades promovem a construção de vínculos saudáveis e o desenvolvimento da capacidade de diálogo, habilidades essenciais para a convivência em sociedade. O acesso ao conhecimento e à cultura, antes privilégio de poucos, torna-se um direito acessível, desmistificando a ideia de que a educação formal é o único caminho para o aprendizado e o crescimento pessoal.

O LIBERTCE na Prática: Um Modelo de Gestão e Impacto Social

O projeto LIBERTCE do TCE-PB, coordenado pela ECOSIL, exemplifica como a gestão pública pode ser um agente transformador na área da execução penal. A iniciativa, que começou em 2019, não se limita a uma ação pontual, mas se estrutura como um programa contínuo de doação e distribuição de livros. Ao longo dos anos, milhares de volumes, tanto didáticos quanto de literatura em diversos gêneros, foram entregues às unidades prisionais da Paraíba. Essa abrangência garante que o projeto beneficie um grande número de apenados, oferecendo a eles uma gama variada de opções de leitura, desde clássicos da literatura brasileira e mundial até obras que abordam temas como empreendedorismo, filosofia, história e desenvolvimento pessoal.

A sustentabilidade do LIBERTCE é um ponto crucial para seu sucesso. O projeto depende de parcerias, doações e, principalmente, do engajamento de servidores públicos, voluntários e da própria sociedade civil. O TCE-PB, ao abraçar essa causa, demonstra um compromisso com a ressocialização e com a construção de um futuro mais digno para os indivíduos em cumprimento de pena. A fiscalização e o controle exercidos pelo Tribunal de Contas, nesse contexto, se expandem para a auditoria social, verificando e promovendo ações que geram impacto positivo direto na vida dos cidadãos.

Os resultados do LIBERTCE são percebidos de diversas formas. Há relatos de apenados que, através da leitura, desenvolveram novas habilidades e descobriram aptidões para a escrita, transformando suas experiências em contos e poemas. Outros, estimulados pela leitura didática, buscaram a conclusão de estudos formais dentro da prisão. O mais significativo, talvez, seja a mudança de perspectiva que a leitura proporciona: muitos passam a enxergar a educação como um caminho para a liberdade, não apenas a liberdade física, mas a liberdade de pensamento e de escolha.

Em um cenário onde a ressocialização é um desafio constante, iniciativas como o LIBERTCE do TCE-PB representam um farol de esperança. Elas reforçam a ideia de que a punição não deve ser o único objetivo do sistema penal, e que investir na educação e na cultura dos apenados é investir no futuro de uma sociedade mais justa e com menos violência. A leitura, portanto, não é apenas um direito ou um benefício; é uma ferramenta de dignidade, um passaporte para novas possibilidades e, acima de tudo, uma ponte para a verdadeira liberdade.

O LIBERTCE: Um Olhar para o Futuro e os Desafios da Expansão

O sucesso do projeto LIBERTCE na Paraíba é inegável, mas o caminho para uma ressocialização plena e a universalização do acesso à leitura no sistema prisional ainda apresenta desafios. Um dos principais é a expansão e a sustentabilidade da iniciativa para todas as unidades prisionais do estado, garantindo que nenhum apenado seja excluído da oportunidade de remir sua pena pela leitura. Para isso, o LIBERTCE precisa continuar a fortalecer suas parcerias com outras instituições governamentais, organizações da sociedade civil e a comunidade em geral. Campanhas de doação de livros e o engajamento de voluntários são cruciais para manter o fluxo de obras e a dinâmica do projeto.

Outro ponto importante é a qualificação das equipes responsáveis pela gestão das bibliotecas e pela avaliação dos relatórios de leitura dentro das unidades prisionais. Garantir que esses profissionais estejam bem preparados para orientar os apenados, estimular o hábito da leitura e realizar uma análise justa e pedagógica dos trabalhos é fundamental para a efetividade da remição. Além disso, a infraestrutura das bibliotecas nas prisões, por vezes precária, necessita de investimento para criar espaços mais acolhedores e adequados ao estudo e à reflexão.

O LIBERTCE também pode explorar novas frentes de atuação, como a formação de clubes de leitura e escrita dentro das unidades, incentivando a criação literária pelos próprios apenados. Projetos que culminem na publicação de antologias ou na apresentação de peças teatrais baseadas em leituras podem potencializar ainda mais os benefícios da iniciativa, promovendo a autoestima e o reconhecimento de talentos. A integração com programas de educação formal e profissionalização já existentes no sistema prisional também pode criar sinergias valiosas, transformando a leitura em uma ponte ainda mais robusta para a reintegração social e o mercado de trabalho.

A longo prazo, o impacto do LIBERTCE na redução da reincidência criminal pode ser significativo. Ao proporcionar um ambiente de aprendizado e desenvolvimento pessoal, o projeto não apenas oferece uma alternativa construtiva ao tempo de cárcere, mas também equipa os indivíduos com ferramentas essenciais para uma vida digna e produtiva após a soltura. A leitura se torna, assim, um investimento social, um catalisador para a mudança e um símbolo da crença de que a educação pode, de fato, libertar. O exemplo da Paraíba, através do LIBERTCE, ressoa como um modelo a ser replicado, mostrando que a remição da pena pela leitura é mais do que um direito; é um caminho para a humanização e a esperança dentro do sistema prisional.

A Leitura como Gesto de Humanidade e o Eco da Esperança

À medida que nos aprofundamos na jornada do projeto LIBERTCE e na importância da remição da pena pela leitura, percebemos que estamos diante de algo muito maior do que meros processos burocráticos ou estatísticas. Estamos falando de humanidade. Em um ambiente que, por sua própria natureza, tende à despersonalização, o ato de oferecer um livro é um gesto profundo de reconhecimento da dignidade do outro. É um lembrete de que, apesar dos erros e das circunstâncias que levaram à privação da liberdade, a capacidade de sonhar, de aprender e de se transformar permanece intacta.

A leitura, nesse contexto, transcende a função de um instrumento para reduzir dias de pena. Ela se torna um diálogo silencioso e poderoso entre o autor e o leitor, uma ponte que conecta o universo particular de cada indivíduo com um mundo de ideias, emoções e possibilidades. Para muitos que se encontram atrás das grades, esse diálogo pode ser a única janela para a liberdade de pensamento, para a imaginação e para a esperança de um futuro diferente. É a chance de reafirmar a própria identidade, de redescobrir talentos adormecidos e de vislumbrar um caminho de volta à sociedade com mais preparo e consciência.

O LIBERTCE, portanto, não é apenas um projeto de distribuição de livros; é um investimento na alma humana. É a crença inabalável de que a educação, em sua forma mais acessível e democrática, tem o poder de quebrar ciclos de violência e exclusão. Ao dar a um apenado a oportunidade de mergulhar em uma história ou de adquirir um novo conhecimento, estamos plantando uma semente de mudança, incentivando a reflexão e nutrindo a chama da ressocialização.

Que o eco dessa iniciativa ressoe por todo o país, inspirando outros estados e instituições a abraçarem essa causa tão nobre. Que a imagem de uma pessoa em privação de liberdade, absorta na leitura de um livro, seja um símbolo potente da capacidade de superação e da força transformadora do saber. Porque, no fim das contas, a verdadeira liberdade floresce não apenas quando as grades se abrem, mas quando a mente se expande e o coração se enche de novas perspectivas. E essa liberdade, inalienável e eterna, a leitura pode nos dar.

*Secretário da Ecosil, Professor da UFPB, Advogado.



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