“O pequeno burguês”

 

Nos anos sessenta começaram a surgir as faculdades particulares, dentro de um novo conceito de educação superior, montado pela ditadura militar. Martinho da Vila então resolveu fazer o seu protesto numa música, narrando as complicações de um jovem pobre, ao ser aprovado no vestibular, que de repente se via diante das dificuldades para custear o curso que escolheu frequentar. “O pequeno burguês” foi uma maneira de criticar essa situação em que muitos brasileiros, sem condições financeiras, sacrificam suas parcas economias para ver seus filhos num curso superior. Martinho fez a música inspirado na situação real de um amigo que passou por todos os obstáculos e contratempos, mas conseguiu terminar o curso superior, ainda que não tenha podido participar da festa de formatura, por sua condição de pobreza.

“Felicidade, passei no vestibular/Mas a faculdade é particular/Particular, ela é particular”. A alegria de saber o resultado do vestibular demora pouco tempo. Ao se dar conta de que a faculdade para o qual foi aprovado é particular, bate uma tristeza e uma preocupação. Como vai custear as despesas do seu curso tão sonhado?

“Livros tão caros, tanta taxa pra pagar/Meu dinheiro muito raro/Alguém teve que emprestar/O meu dinheiro alguém teve que emprestar”. O dilema a ser vivido com a falta de recursos para adquirir livros, que não são baratos, e pagar taxas exorbitantes que são cobradas, fez com que procurasse a solução através da tomada de empréstimo. Buscou socorro financeiro, para bancar a oportunidade de ser universitário, uma vez que seu salário era insuficiente para cobrir as despesas.

“Morei no subúrbio, andei de trem atrasado/Do trabalho ia pra aula/Sem jantar e bem cansado”. Homem pobre enfrentava diariamente a rotina sacrificada de sair do subúrbio para o trabalho, muitas vezes com o trem atrasando, e de lá ir diretamente para a faculdade sem se alimentar. Era o preço que pagava pela expectativa de obter um diploma e poder melhorar sua vida.

“Mas lá em casa, à meia noite/Tinha sempre a esperar/Um punhado de problemas e crianças pra criar/Para criar, só criança pra criar”. Ao retornar tarde da noite para casa, se deparava com os problemas domésticos que tinha que administrar. Além dos seus estudos, tinha igualmente de encontrar meios de proporcionar a educação dos filhos. As dificuldades eram cada vez maiores, mas não podia se dar ao direito de deixar de sonhar.

“Mas felizmente, eu consegui me formar/Mas da minha formatura, não cheguei participar/Faltou dinheiro pra beca e também pro meu anel/Nem o diretor careca entregou o meu papel/O meu papel, meu canudo de papel”. Enfim, depois de muito penar conseguiu concluir o curso. No entanto, não teve condições de ir à festa de formatura porque não dispunha de dinheiro para comprar o anel, nem a beca. E assim ficou sem receber solenemente, das mãos do diretor careca, o seu canudo de papel, o diploma.

“E depois de tantos anos só decepções, desenganos/Dizem que sou um burguês muito privilegiado/Mas burgueses são vocês/Eu não passo de um pobre coitado”. Formado, a ilusão de uma vida melhor vai desaparecendo, além do diploma de detentor de um curso superior, pouca coisa mudou. Esse título para muitos dava uma imagem de que havia se tornado um burguês, havia subido na pirâmide social. Puro engano, ele continuava tão pobre quanto antes. Na verdade burgueses são aqueles que continuavam se aproveitando da sua força de trabalho.

“E quem quiser ser como eu/Vai ter é que penar um bocado”. Para chegar aonde chegou, apesar dos pesares, é preciso, antes de tudo, ter muita coragem, força de vontade e dedicação, não obstante todas as dificuldades, “ralar muito” como se diz na linguagem popular.

Esse problema é atualmente vivenciado por muitos por este Brasil a fora.

• Integra a série de crônicas “PENSANDO ATRAVÉS DA MÚSICA”.

Mais Posts

Tem certeza de que deseja desbloquear esta publicação?
Desbloquear esquerda : 0
Tem certeza de que deseja cancelar a assinatura?
Controle sua privacidade
Nosso site utiliza cookies para melhorar a navegação. Política de PrivacidadeTermos de Uso
Ir para o conteúdo