Geral

No Banco Do Carona


08/12/2010



 Aprendi a dirigir aos catorze anos. Um pecado! Mas naquele tempo….long long time ago…,não tínhamos consciência dos perigos tantos do trânsito, e a cidade era uma vila. Uma vila pequenina e calma. Com poucos carros e muito silêncio. Minha mãe foi quem me ensinou (Ah! Quantas coisas ensinam as mães!); umas voltinhas no Cabo Branco e da terceira vez já vim dirigindo por toda a Epitácio até em casa, na Av. Almirante Barroso. A festa estava feita! Minha tarefa? Buscar as irmãs nas Lourdinas – um pulo! E levar papai ao Clube Cabo Branco para o xadrez. E, à uma da tarde, no ponto de cem reis não existia viva alma. Só eu dirigindo e deixando meu pai para o vício do xadrez com Dr. Arnaldo Tavares. Depois eu descia a Lagoa toda minha, e pronto, em casa novamente. Tudo simples assim.

E nesse anos todos, dirigir tem sido acima de tudo um prazer. Adoro dirigir. E quando saio de casa, eu sou a motorista. Descobri que uma vez na direção , metade dos problemas com o marido se acabam…E sou grata às quatro rodas. Elas me proporcionam um tempo distinto. Faço mil coisas ao mesmo tempo. Do armarinho, à autorização de exames; trabalho, banco, dentista, casa de alguém, visitar à mãe, feira, costureira, cinema, e lua cheia. E quando por algum motivo fiquei sem carro, e fiquei alguns meses pela vida, o pânico se instalava. O tempo não rende. Os ônibus lotados, sem horário fixo, dor de cabeça ,etc… Tenho uma amiga que me alertou até para o olhar da cidade do ponto de vista de quem não tem carro. O mundo é um para quem anda à pé, para quem anda de ônibus, de carona, ou na direção. O meu, sempre foi o da direção. Quem dirige está atento às curvas, às mãos, à direção do tráfico, às novidades das ruas, etc…Quem anda à pé, vê tudo mais diminutivamente, o caminho em frente, cada buraco, cada palmo de calçada, o vizinho, o jardim até a esquina, a banca de jornal do bairro. E, quem está no carona, está sempre com mais mobilidade para dar um adeus, virar-se, e não prestar tanta atenção assim: Ai nem sei como se chega ali!

No meu carro, pelas estradas da BR, penso e converso com a vida. Matuto coisas. Discuto problemas filosóficos. Choro. Fico braba com os conflitos. Tento elaborá-los. Enfim….com o ar ligado e o som de Dire Straits, eu vou longe! Agora, por conta do pen drive dos filhos só ouço Los Hermanos e Enime. E com os vidros fechados, chego a dançar um rap! Quem olha de fora, deve de me achar meio louca. E sou! Fico pensando nos dias das vacas magras, com meu Fiat Uno, sem ar, nem direção hidráulica, nem som nem nada, onde somente eu cantarolava, a levar filho nos treinos de handball, na Cultura Inglesa, nos amigos, e no calor escaldante . Claro, enxaqueca todo dia.

Recentemente, meu filho de 19 anos, Daniel, tirou carteira de motorista. E quem disse que eu confiei a entregar-lhe o meu carro é vermelho para sair por aí. Resolvi que daria aulas práticas…Indo e voltando à UFPB , eu no banco carona. No primeiro dia, quase enfartei. Não com ele, mas com a falta de educação dos motoristas, dos pedestres, das carroças, das bicicletas, das motos, do sol e da chuva…Em cada girador, e até lá são 4, eu me via espremida entre os carros. Ninguém sabe entrar em curva, sair, dar a vez, buzinar na hora certa. E as faixas de pedestres? Um horror, pois ou você atropela os pedestres, ou para e provoca um acidente. Vimos alguns. E esta semana já presenciei dois acidentes de motos na minha frente. O mais hilário foi quando paramos num sinal, e uma moto com duas pessoas, parou quase batendo na nossa porta, e, quando o sinal abriu, nosso carro partiu primeiro, senti um leve montinho embaixo dos pneus, e não era que era o pé do motorista da moto? Ele muito largadão e se achando James Dean, parou roçando em nós e achava que já daria a partida de pronto. Errou! E o pé foi atropelado por meu filho.Ainda levamos desaforo. E já ensinei, no trânsito bico calado, pois corremos o risco de levar um tiro. Mas isso é só na lição de mãe, pois quando estou no volante, fico irritada e vejo a hora, eu dar um tiro. Somente no desejo, claro.

Nos meus programas de literatura de língua inglesa, estudamos um conto de uma escritora Indiana-Inglesa-Americana, Jhumpa Lahiri, Mrs. Sen´s (A Sra. Sen), do seu livro premiado, Intérprete de Males, onde a personagem principal, uma Indiana que tenta se adaptar à sociedade americana e não consegue aprender a dirigir. E essa “falha” faz toda a diferença em sua vida. Mrs Sen, se sente inadequada à nova cultura e tem sua identidade diariamente desconstruída. Numa tentativa de se aproximar num tempo imaginário da sua Índia, faz da sua casa, um lugar de preservação de sua cultura e identidade. E dentro desse espaço sensorial, ler cartas dos parentes distantes, e passeia por uma memória de hábitos e rituais; e quer dirigir, para assim poder comprar seu peixe num mercado distante.

O conto é construído a partir da relação de Mrs. Sen, que irá trabalhar como baby sitter, com um garoto de nome Eliot, cuja mãe, uma americana típica, estressada e que não tem o tempo de observar os detalhes que lhe cercam, pensa que, Mrs. Sen não sabendo dirigir, deixa-a num lugar de inferioridade frente às outras mulheres, pior ainda, uma mulher suspeita de algum fracasso, uma vez que no nosso mundo da velocidade e do salvem-se quem puder, não dirigir constitui metáfora de uma incompetência no ser ágil na sociedade moderna; é abdicar de ter as rédeas do seu tempo e destino.

Mas e quem disse que dirigir é coisa para todo mundo? Não é. Como nada nessa vida é coisa para todo mundo. Tem gente que é mais vagaroso, que tem medo, que fica mais aflito, e que simplesmente não consegue passar no psicotécnico e passar marchar, olhar no retrovisor, e calcular uma ultrapassagem, tudo ao mesmo tempo. No caso de Mrs. Sen, suas habilidades são outras; cozinhar um curry divino, perfumar as almofadas com incensos, e ter uma delicadeza única de silenciar, escolher peixes e reclamar do ritmo desse novo mundo que não seja sua Índia. E quem há de negar que esta lhe é superior?

E nesse dia de Iemanjá, Saravá! Busco um equilíbrio entre as forças opostas. Não abro mão de dirigir para lá e para cá na vida, mas estou sempre lembrando desse personagem tão lírica e perspicaz, Mrs. Sen, para nunca perder a capacidade de contemplar os meus arredores; de ser um pouco slow (se é para citar uma tendência de comportamento contemporâneo): Devagar para Divagar, eis a questão. Mas enquanto banco de carona, nessa tarefa diária de mãe, só consigo segurar no freio de mão, suar frio, e aprender assim uma nova arte: a entrega do meu filho à arte de dirigir o carro e à própria vida. Perder o controle das coisas, também é preciso.

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa, 8 de Dezembro de 2010



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