Geral

Mulher & Literatura: Flashes, Palavras & Poderes


30/08/2011

Não sou idêntica a mim mesmo
Sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob
(o mesmo ponto de vista)
Não sou divina, não tenho causa
Não tenho razão de ser nem finalidade própria:
Sou a própria lógica circundante

(Ana Cristina César, Poema Óbvio)

Aconteceu no início de agosto, em Brasília, o XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura e o V Internacional . Em 1987 o primeiro Encontro foi aqui em João Pessoa. Depois , em 2004 o grande retorno à casa materna e o X Seminário acontecia por entre paraibanas e mulheres de alhures.

Esse último, teve como Tema: Palavra e Poder: RepresentAÇÕES Literárias e uma homenagem especial às escritoras afro-brasileiras. E as mulheres estão podendo fazer uso e abuso da palavra, bastava que se olhasse a programação. Um programa diverso, interessante e por áreas conhecidas, estranhas, resgates e afins.

A professora e pesquisadora Rita Schmidt (UFRGS) abriu os trabalhos, comentando que quando menina, tinha sido reprovada em bordado no interior do Rio Grande do Sul e que essa reprovação a levou para longe e para sempre, em busca de novos lugares e novos saberes. E que, o Colégio de Freiras, tinha sido o responsável pela sua escolha de um dia vir a ser uma feminista. Comigo, a mesma coisa! Não havia jeito de eu acertar os pontos cheios dentro do “bastidor” das toalhas bordadas, ou quase, das aulas de Irmã do Bom Conselho! As Lourdinas também tiveram seus trilhos nas minhas andanças em me encontrar com o feminismo: Usar corpinho, abaixar a bainha da saia e as interdições outras… do século passado.

Rita falou também de Carole King e da música “Natural Woman”. E se perguntava: “Existe uma mulher não natural?” E lá se foi a Rita, com toda autoridade que os anos lhe conferem, a falar de Contardo Calligaris, Foucault, Judith Butler, Julia Kristeva para chegar nas personagens de Ana Karenina, Madame Bovary, Edna e Mrs. Ramsay (leia-se Tolstoi, Flaubert, Kate Chopin e Virginia Woolf). Madame Bovary e sua rejeição ao martírio doméstico, e a perda do estatuto da mulher natural ou seja uma mulher des-naturada!

Em The Awakening, falou do mar não apenas como cenário, mas como um lócus de renascimento feminino; um convite à figura errante em abismos, realçando o “nadar sozinha mar adentro”, para um encontro existencial e uma nova dimensão de si e conseqüentemente o seu Poder. Nadar para longe! Como não lembrar da Ophélia da performance arrebatadora de Lúcia Sander: “Nasceu Mulher? Aula de natação!”. O suicídio então como uma forma de compreender vários despertares, várias recusas, e uma forma de liberdade radical de dizer NÃO.

Rita finaliza sua palestra com referências mais que poéticas à Mrs. Ramsay (To The Lighthouse), quando ressaltou as Janelas enquanto metáfora de visão e espaço simbólico literário; Mrs. Ramsay, a mãe terra, envolta num xale, emoldurando sua forma de SER. Logo associei ao avental e paninhos de Mrs. Wrigth, personagem silenciosa de Triffles (Susan Glaspell), um avental também como extensão do seu corpo doméstico.

Mrs. Ramsay, segundo a fala de Rita, olhava os objetos ao seu redor. E nessa capacidade de olhar em volta, unia as pessoas, penetrava dentro de si e pensava. Ficava sozinha e olhava a luz do farol, o mar, as ondas, como imagens dos elementos da natureza e assim costurava a feitura do seu corpo como meio para expressão de subjetividade: “Tudo efêmero como um arco-iris” .E finalizou, chamando atenção para o corpo através da literatura, uma possibilidade para se re-construir o humano.

Depois veio Susana Funck (UFSC) com sua palestra “O Que é Uma Mulher?”. Pergunta emblemática; que deixou Freud com os cabelos em pé; a medusa de Cixous com um leve sorriso nos lábios; a crítica de Showalter no território selvagem; até a Rede Globo interessada.Susana lembrava que, quando se iniciava as pesquisas sobre Mulher & Literatura, em 1985, sabia-se muito bem o que era uma Mulher e que, dois conceitos se faziam fundamentais: O da identidade e o da experiência. Qual Mulher era essa? Questionava. Nós, acadêmicas, brasileiras, brancas, heterossexuais e de classe média. Tínhamos lido O Segundo Sexo e A Mística Feminina. E eu com meus botões acrescentei, Rose Marie Muraro. Susana falava que, aprendíamos com as teóricas Americanas a importância do Resgate e Revisionismo. E muito fizemos com essa Mulher que nos identificávamos. Mas, apesar do “Sisterhood is Powerful”, esses dois conceitos não deram conta: Citou então Joan Scott e seu conceito de Experiência (1991) e disse: “Não são os indivíduos que têm experiência, mas os sujeitos é que são constituídos através da experiência. …Então Experiência é um processo que transforma em subjetivas relações que são, em verdade, sociais e históricas, e, portanto, contingente. Assim, ao ser afirmada , minha experiência como mulher, necessariamente exclui outras experiências de “Mulheridade”, universalizando o particular e generalizando o local. Para ela O social e o Pessoal estão imbicados um no outro. O Ser Mulher aqui e agora é uma parcela ínfima e transitória do que é uma mulher. Não é tudo, mas também não é nada.” Ai Ai, valei-me N. S. dos Milagres de Lúcia Castello Branco, para que me ilumine para saber o que sou à essas alturas do campeonato!

Mas AFINAL O QUE É UMA MULHER? Bradava Susana entre uma gargalhada e outra, com aquele sotaque gaúcho trilegal, tchê! E eu cito, já da Revista Cerrados, uma flor do Brasil Central : “Uma mulher é um indivíduo cuja subjetivação ocorre dentro de normas e comportamentos socialmente definidos como femininos pelo contexto cultural em que se insere, seja aceitando-os ou rebelando-se contra eles. e mal acabo de colocar o ponto na frase quando uma outra pergunta se insinua: preciso ser biologicamente uma fêmea? acredito que não…” e como exemplo citou Lea T, Roberta Close, e o resultado: Conserta-se o corpo!

Contrariamente a nós, a mídia sabe muito claramente O QUE É UMA MULHER, explicou Susana , se encarregando de ressaltar: o determinismo biológico, as qualidades que emanam diretamente do corpo, para produzir uma visão estável da subjetividade feminina. Mas, UMA MULHER, define ela, é um ser humano concreto, entendido culturalmente como feminino em certo momento ou lugar, e que precisa negociar sua experiência dentro de construções discursivas que podem ou não comprometer seu completo desenvolvimento como indivíduo. Não é uma postura necessariamente política.

No entanto, quando o termo “Mulher” é colocado no binômio Mulher e Literatura ou A mulher na literatura, novas considerações precisam ser feitas. O termo aqui funciona como uma marca de diferença, implicando uma relação que qualifica ou restringe a literatura. E diante de texto tão perturbador, ela finaliza reforçando a idéia de que: Nenhuma representação é neutra, e que a posição política evocada pelo binômio Mulher e Literatura, tem que ser com uma sólida ancoragem na crítica feminista. Mesmo que continuemos a não saber O QUE É UMA MULHER, ou o que POSSA SER LITERATURA.

Nádia Gotlib(USP), foi a próxima palestrante. Fiquei de olho comprido para a biografia de Clarice Lispector através de fotografias. Nádia, com sua figura bela e elegante, falou do ponto de vista de um testemunho (todas temos algo a testemunhar e a politizar nossas estórias depois), e ressaltou dois fatos importantes: O que as autoras trouxeram: perseverança e o direto acesso à prática sexual, desvinculada da “norma culta”, e o direito à privacidade. E citou Clarice e sua felicidade clandestina. A poesia de Gilka Machado foi seu grande estopim. E resgatou “A Canção da Mal Maridada” de Ria Lemaire que, com suas pantalonas de veludo azul, compradas nos mercados de Paris, depois também soltou o seu verbo e substantivos. Por conta dessa Canção, me lembrei do meu cuscuz revolucionário, quando em plena aula, incentivava às alunas reclusas, à convidarem as amigas para esse acompanhamento nordestino, e que, com café prosa, poderiam curar quaisquer tristeza e inadequação…

Nádia lembrou as palavras do crítico mal informado que, exigia completude de Perto do Coração Selvagem. Não foi ele capaz de perceber a ironia… nem a plenitude da incompletude de Clarice. Nádia sabe de Clarice! E nós leitoras e ouvintes, nos embriagamos de tanta sabedoria. E ela falava dos dois pontos de Clarice: do seu constante exercício de deslocamento, do seu devir, e de uma certa foto com o marido e embaixadores, em que fechou os olhos para inutilizar a foto. Não quer a foto? Feche os olhos!

Ria Lemaire (Uniniversité de Poitirs) falara da crise financeira na Europa: Existe um mal maior! Que mal seriam esses? Uma metáfora! A apropriação de culturas desprezadas, populares, os dialetos, que serviam a base da literatura nacional. A identidade não mais com o país mas com a cidade, um fenômeno como o Futebol, que o diga Daniel Co-Bendit.

Uma mesa sobre Silêncio & Traumas. “I know why the birds sang”, de Maya Angelou, e uma linguagem matrilinear. A memória de um estupro quando criança. Um trauma e seus efeitos políticos. O discurso da sobrevivência. Maya , estuprada aos 8, até os sentidos foram rompidos. Maya em silêncio por um ano. A literatura como cura: Uma catarse!

E as Mulheres de Letras: Diva Cunha (UFRGN),) o seu fazer Poesia; seu caderno de poemas de arame, com 300 poemas perdidos num Quarto de Despejo! Virginia Woolf já dizia, o que resta de um dia de uma mulher? What remains? Diva disse: “A literatura feminina me libertou os medos”. “ Arrumo os livros na estante”. Ler poemas é igual a mergulhar noutro mundo, e recitou o seu versinho: “ Para o Bem e Para o Mal, todos imitamos João Cabral”

Helena Parente falou das suas influencias, suas mulheres inventadas, da teoria e da prática literária. Quem vem primeiro? Eis a solução. Falou da sua epifania na criação literária. A mulher prisioneira em A Dama no Espelho e O Corpo do Cerco. Até as “Fofurinha do Papai” (mini-conto). Gostaria de ter sido sua aluna; ouvi-la me deixa curiosa pelas tantas cores do vermelho.

Lúcia Castelo Branco (UFMG), chegou com sua mulher escrita! O título da Sua palestra?: Nossa Senhora das Lágrimas inspirada em Alice Ruiz e suas Milágrimas: A cada Mil lágrimas, Sai um milagre. Falou das Profissões impossíveis: educar, curar, governar (Freud), e das suas próprias: Escrever, psicanalisar, e educar. Escrever ? uma decisão de uma menina a desfiar as franjas do sofá; a menina queria fazer chorar. E, N. S. dos Milagres? fazei chover no texto.

Para fazer companhia à mulher escrita, comprei o seu livro Caderno I – Manoel de Barros, Coleção AmorÍmpar. Seu filho adolescente se fazia de livreiro compenetrado. Não consigo nem ler um livro assim: feito só de beleza e beleza e verso. Só olho. Só pego no livro, só fico a contemplar. Delírio & Êxtase!

E o êxtase ao Farol com Mrs. Ramsay; o êxtase com Bliss, de K. Mansfield e o prazer supremo; a androginia e Virginia Woolf; Between the Acts; As Horas e Beauvoir: Não há ninguém melhor que a mulher para falar das mulheres! Eu e Vitória a tagarelar no almoço e no jantar!

Hilda Flores e o Dicionário de Mulheres; com seu parceiro enamorado sentadinhos no banco do ônibus. E quando fazia frio, ele lhe envolvia nos braços e se aninhavam carinhosamente. Nós, no banco detrás, emudecidas, invejávamos. Zahidé Muzart também homenageada e com mais lançamentos da Editora Mulheres.

Conceição Evaristo, fez a palestra de encerramento – Nas linhas da Escrevivência, a oralidade, a mulher ordinária . Em 2011 , a ONU decretou o ano internacional afro descendentes. Falou de espaço subalternos, da Pessoa Negra – invisível na Favela e extremamente visível em bairro nobre; do Embranquecimento exposto; do apagamento no Interior da escravidão. Fez referência a Gilberto. Freyre e o que a negra faz com as palavras e a comida. De como colocamos a importância da Língua e a interferência na formação da nação brasileira. Por que esse mesmo contingente, a Língua, não são considerados filhos dessa pátria? Como não é tão gentil para com os negros? Estaria a literatura assim como a História escamoteando, tentando negar a matriz africana na literatura Brasileira?

Margareth Rago, escreveu sobre Norma Telles , que com Cabeça na Lua e gosto de Arte e Aquariana= Pronto somos duas, pensei. E a Escrita de Si ? onde o indivíduo se elabora , pratica a liberdade e se abre para o outro; abre o devir, o outro de que se é. Como as mulheres afetam o campo da escrita; A escrita sobre o Lar e Exílio

Aí ouço a música Yellow Submarine!! A chamada do celular de Vitória lima. Procura disfarçar…achando que os Beatles não estavam ali…De repente um incêndio, os bambus caindo, altas labaredas. As mulheres estão queimando! Ora, mas não estamos mais no tempo das bruxas, pero que las hay las hay!

Tânia Swain, essa feminista com nome quase de cisne, e com seus longos cabelos cor de prata, falou da literatura de viagem e de aventura. Está encantada. Retomou a pergunta quer problematiza mais que a resposta – Escrita feminina? Existe? Como trabalhar autoria, não existe uma essência humana que defina talentos baseado na biologia e na genitália. E retrucou o bordão: Pai, Pênis, Patriarcado.Quem decide a importância literária? A literatura de aventura uma desconhecida e vastidões. Um outro diverso. Falei da nossa aventureira Kay France, minha vizinha que ganhou os Mares do Canal da Mancha nadando. Muito mais do que Ophélia, já sabia ela que: Nadar é preciso! Feitos, sagas in and out do feminino.E os Etnólogo só se preocupam com os homens. Não seriam Nômades também as mulheres? A Literatura de Aventura se constitui também como uma construção de si.

E por entre uma corrida e outra, uma fala de Constância Duarte, outra de Peônia Viana, ou das garotas da Ufal: Izabel Brandão, Ana Cecília Acioly,e Ildiney Cavalcanti; Tânia Ramos, Simone Schmidt (ausência mais que sentida e justificada), Cláudia Lima Costa, Maria Aparecida , minha parceira de estudos sobre As Horas.

Um professor falou da obra da fotógrafa Rosangela Rennó (que conheci através da amiga Rose), e suas práticas autobiográficas na contemporaneidade. Restos de fotografia e seus espelhos diários. Contos de Bruxa ao invés dos contos de Fadas. Os arquivos. Os nomes próprios, o nome do outro, os escritos do eu. Os homens são todos iguais? 100 imagens com H iguais em dourado, acabamento rococó e regularidade sintética.

E no meio dos livros, Paola Anthony folheava Filosofia da Caixa preta – Vilém Flusser, Ensaios para um futura filosofa da fotografia. Bagatelas, fomos ver. Uma peça, um crime, um passarinho, um bordado. Rita não soube bordar, Clarice disse que escrevia porque não sabia estudar, Virginia Woolf falava que escrever era inofensivo e tudo que precisávamos era uma folha em branco e um lápis. Ponto. E vírgula!! E eu aqui tentando fazer um relatório, um resumo, justificar meu punho doído de tanto escrever a fala das mulheres. Queria deixar tudo tatuado na memória do prazer.

Ao final, Cristina Stevens, a rainha mestra desse evento na UnB, foi para Rússia. Talvez dançar um Pagode Russo ou ver a Aurora Boreal do Círculo Polar Ártico na Escandinávia, ou ainda dormir, pois que, trabalhou e trabalhou para que todas as mulheres do mundo saíssem felizes da tenda maior, cantarolando entre um café com bolinho e outro, ao som da Orquestra das Senhoritas com Dora Galasso de maestrina em punho.

Já na saída do campus, um encontro com a professora Rosvitha Blume UFSC), que me cobrou esse escrito, uma vez que tinha gostado do último. E assim fiquei animada, por encontrar minhas leitoras perambulando pelo mundo…assim como eu, que com lápis e folha em branco, não acho tão fácil que nem Woolf, mas vou escrevinhando minhas palavras aos bons ventos. Se por acaso misturei as falas e os conteúdos, não se preocupem, esse patchwork de autoria não deve de todo ter prejudicado o bordado.

Já no aeroporto, não resisti e comprei Rompendo o Silêncio, da americana púrpura Alice Walker: uma poeta diante do horror em Ruanda, no Congo e na Palestina. Ainda por desvendar.

Voltando para casa depois de uma maratona e meia de Mulher & literatura, agora quero mais é ler a Revista Lola, e a crônica de Clarice Niskier que, com sua Alma nada Imoral afirma: Dormir é o sexo de hoje! Como meus filhos já cresceram e não tenho que encenar monólogo algum, nem de ficar nua de alma nem nada, posso fazer as duas coisas. Viva! Cansada! Com a mala cheia de novidades, e já contando os dias para o próximo Seminário.

Abraços para todas as mulheres do mundo, e para as participantes desse evento, a quem rendo minhas homenagens através das/dos pesquisadores locais: Vitória Lima, Elizabeth Souto Maior, Nadilza Moreira, José Villian, Ana Coutinho, Flávia Santos (diretamente das terras de Emily Dickinson), Liane Schneider, Zélia Borá, Valéria Andrade e a não local..Lúcia Sander.

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa 26 de Agosto, 2011



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