Geral

Dr. Carrilho: O Homem Que Caminhava


27/12/2011



 “A casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz….A casa é uma das maiores (forças) de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem” (Gaston Bachelard)

Desde muito pequena que me enamorei de um quarteirão na Praia de Manaíra. Era o lugar onde morava Dada Novais, Corina, Meire e Denise, Mário e Marcilhinho, Chôla Henriques (na rua atrás), Tenio, Antonio Carlos e Eduardo Martins, Totonho, Serjão, Mário e Mingo e os Carrilhos.

Manaíra se resumia a esse lugar. Uma praia ainda longe de tudo, limpa e silenciosa, onde na maré de janeiro, tomávamos banho de bóia. Durante minha meninice, foi lá que fui descobrindo, às amigas, os assustados, os banhos de mar, os paqueras, os primeiros namoricos. A juventude dourada de um tempo. E a casa dos Carrilhos, era e é até hoje, como tão bem disse Aberlardo Jurema no seu texto no Correio da Paraíba da semana, um ponto de referência, literal e simbolicamente.

Fui contemporânea de Ana Luiza, a filha mais velha de Dr. Carrilho e D. Célia, que quando foi estudar no Rio de Janeiro, voltava cheia de bossa e novidades de um mundo que era grande. Minha prima Marisa Veloso Borges, também foi, e juntas distribuíam sonhos para as meninas provincianas; as boas novas de um Rio ainda desconhecido para mim.Depois vieram os outros irmãos, e, Neto e Nenen (Fernando), logo se encantaram com as belezuras das minhas irmãs.

Fui a algumas festas de adolescência naquela casa mais que aconchegante; fiz alguns pit stops em Reveillons, Peladas, ou qualquer dia, mas não posso dizer que fui uma freqüentadora assídua daquele terraço emblemático. Mas, há quase duas décadas que escuto, através da minha irmã Bebé, nora de Dr. Carrilho, somente levezas e aconchegos, dos almoços de domingo e estórias ao redor da mesa. Sou fascinada por uma mesa, comida e conversas, nem sempre nessa mesma ordem, e a começar pelos sabores e belezas culinárias, sempre dizia à minha irmã: Bebé, leve um caderninho, e anote pelo menos algumas dicas culinárias do talento de Ivan (seu Genro), ou das Senhoras trabalhadoras da Cozinha, claro que tudo supervisionado pela filha Lucila/ Cia e D. Célia.

Com o tempo, aprendi a ver uma figura masculina elegante, um homem atlético e altivo, que todos os dias impreterivelmente, caminhava calçada adentro e afora. Morei anos no Cabo Branco, e fosse o que fizesse, sempre via aquele homem caminhando a passos largos. Era Dr. Carrilho. Como era um pouco sisudo e sempre focado na caminhada, ficava encabulada de cumprimentá-lo. Depois de anos, já com Bebé no terraço, algumas vezes o abordei, e me identificava: Boa Tarde, Dr. Carrilho, sou irmã de Bebé, e ele meio que sem jeito, elegantemente me retribuía o cumprimento.

Outros anos passaram , e um dia soube que Dr. Carrilho não poderia mais caminhar. Estava com sua vista prejudicada, e seus olhos agora somente seriam a janela da sua alma. E para meu espanto, Dr. Carrilho se re-inventou e passou a andar ao redor do terraço do primeiro andar. Dr. Carrilho agora fazia parte do meu percurso e da minha paisagem E toda vez que ali passava, e não eram poucas (com minha vida atribulada, levando e buscando filhos nos lugares), sempre avistava aquele mesmo homem elegante, a caminhar num quadrado, que ele refazia em léguas, tamanha sua necessidade física e subjetiva e dar passos largos vida afora.

Nos bons e mais restritos momentos, o que sempre me fascinou naquela casa, e naquele homem, primeiro era sua capacidade de aglutinar jovens. Dr. Carrilho gostava imensamente de trocar figurinhas com todos os amigos dos filhos, e depois netos, e já já bisnetos. E assim foi ganhando fãs e agregados, sempre lá aos domingos para o whisky de cada dia, e as delícias de Como Água para Chocolate. A outra coisa do fascínio era o que minha irmã sempre se perguntava: O que tem aquela casa para conseguir agregar tanta gente , sempre? Eu ficava a tentar compreender esse fascínio. Ora uma casa tem história; tem gente; tem alma; tem personalidade; tem cheiros; gostos; amores; frustrações; dores e delícias de uma vida. Ou de várias! Essa casa tinha e tem tudo isso e mais afeto em tiras e amor aos pedaços. Uma casa acarinhada! Uma casa de Babette! Uma casa com Chocolate! Quem sabe com a subjetividade de uma Juliete Binoche, a transformar o pão e o vinho , cotidianamente. Não é pouco! Certos tesouros e luxos, só os sábios dispõe, ou tem a generosidade de compartilhar.

O filósofo Gaston Bachelard, no seu livro A poética do espaço, fala da Casa e do Universo; do Ninho; dos Cantos e da Imensidão Íntima: “…é preciso dizer como habitamos o nosso espaço vital de acordo com todas as dialéticas da vida, como nos enraizamos, dia a dia, num “canto do mundo”. Porque, a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos”. Dr. Carrilho, junto com D Célia e filhos, com certeza fez daquela casa o seu canto do mundo, e o canto de muita gente.

Por esses dias, Dr. Carrilho fez sua caminhada maior, rumo às estrelas. Deixou órfã toda uma família maior; sua família de gerações freqüentadores daquele terraço e daquela casa. Foi-se numa semana de festas, e fiquei a pensar que se isso não teria sido sua homenagem derradeira. Numa casa tão festiva, onde as datas do Natal e Reveillon eram sempre tão celebradas, Dr. Carrilho foi-se no meio delas, como se quisesse deixar seu rastro de comenta brilhante no coração de todos, mais ainda no de seu filho Fernando, que hoje aniversaria; ou de Neto, seu outro filho e que faz anos justo no Ano Novo; ou ainda no coração de tantos agregados, que jogavam pelada, ou simplesmente brindavam à vida.

Bachelard diz que: “A vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no regaço da casa.” Acho que a vida também termina num terraço de uma casa. Pelo menos foi assim, para o homem que deixou o Manaira mais triste e mais pobre. O homem que caminhava finalmente cruzou a linha do horizonte e do arco íris.

“Toda pessoa deveria então falar de suas estradas, de suas encruzilhadas, de seus bancos. Toda pessoa deveria fazer o cadastro de seus campos perdidos”.

Meu abraço carinhoso à D. Célia, Ana Luiza, Beta e Cia; Neto, Eduardo e Fernando. E Fernando, não fique triste, vida e morte fazem parte do mesmo arco-íris! Por isso, por mais esquisito que possa parecer, meu abraço também de Parabéns prá Você!

Ana Adelaide Peixoto, João Pessoa 27 de dezembro, 2011



Os comentários a seguir são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site.