A tragédia da Lagoa

O barco saiu das imediações da Rua Getúlio Vargas para dar uma volta no sentido horário em torno da fonte luminosa localizada no centro da circunferência da Lagoa e voltar ao ponto de partida.

(Foto: Djalma Goes)

Há cinquenta anos aconteceu uma das piores tragédias registradas em João Pessoa (PB), quando uma embarcação do Exército do tipo chata ou portada, de carregar material para a construção de pontes, foi colocada na Lagoa do parque Solon de Lucena para recreio das crianças, em viagens de quinze minutos, num percurso circular de alguns quilômetros. O barco operou durante uma semana, transportando em cada viagem cerca de 80 pessoas.

Na última volta, num domingo 24 de agosto de 1975, às 17 horas, quando o sol declinava, centenas as crianças queriam embarcar na portada na última viagem em torno do anel da Lagoa. Como a média de ocupação era de 80 pessoas por cada vez, não havia espaço para todas. Pelo menos 200, porém, conseguiram subir a bordo, numa perigosa superlotação, com o agravante de que não havia nenhum salva-vidas para o caso de um naufrágio.

O barco saiu das imediações da Rua Getúlio Vargas para dar uma volta no sentido horário em torno da fonte luminosa localizada no centro da circunferência da Lagoa e voltar ao ponto de partida. De longe não víamos sequer o lastro da embarcação, tal o número de pessoas que a superlotava. Mas todos se mostravam alegres: as crianças sorridentes e alguns adultos satisfeitos, com os filhos menores nos braços como víamos daquele ângulo onde eu me encontrava, ainda próximo do ponto de partida.

O sol descia e as águas já escureciam pela diminuição da luz no parque Sólon de Lucena, encoberto pelos prédios à frente, nuvens do alto e palmeiras imperiais, dando-lhe um toque sombrio. E o perigo logo se fez presente. Depois de percorrerem boa parte da viagem, talvez um terço, quando já se encontravam no local mais profundo, na direção do sangradouro, o mais profundo, as pessoas em terra começaram a se preocupar quando observaram que o barco parecia estar desaparecendo.

Então se ouviram-se gritos vindos da embarcação, que assustaram a todos os que se encontravam à margem da Lagoa. O barco estava realmente afundando. Tentei constatar e vi que duas pessoas adultas já haviam caído nas águas. Os apelos de mãos levantadas e de gritos histéricos em direção às pessoas à margem eram ouvidos vindos da embarcação. Diante da circunstância logo se observou que havia o risco de o barco não chegar à borda da lagoa, no início da rua Padre Meira.

No início angustiadas, as pessoas começaram a acenar para os que se encontravam à margem da lagoa buscando ajuda. Vendo que não vinha socorro começaram a entrar em pânico e desordenadamente passaram a bater nas águas e a gritar. Aqueles que tinham alguma experiência acima das águas ainda prolongaram a permanência na superfície por alguns minutos até a chegada do socorro, mas os que não sabiam nadar, em meio ao tumulto, começaram a submergir até o fundo da lagoa, asfixiados pela aspiração do líquido que inundava seus pulmões.

Primeiro foi o susto, depois o pavor repentino por se encontrarem boiando, depois a reação individual desordenada na busca desesperada de algo em que pudessem se segurar, sem êxito. Em seguida a angústia, que submeteu as vítimas ao grande esforço, gerando perturbações, transtorno e confusão, diante do perigo do afogamento.

Quando vi que outros adultos caíam na água tomei uma decisão, certamente uma das mais importantes da minha vida. Corri para meu carro e segui pela Rua Getúlio Vargas, tomei a Rua Pedro II pela contramão onde não havia movimento de veículos e encaminhei-me para a rádio Tabajara, onde todos eram amigos pelo fato de ter iniciado atividades na imprensa na equipe esportiva da emissora.

Creio não ter demorado dois minutos nesse percurso quando subi às escadas pulando de dois em dois degraus até o primeiro andar do velho prédio da Rua Rodrigues de Aquino, chamada rua da Palmeira (prédio que foi demolido no Governo Burity para dar lugar a um moderno prédio do Fórum).

Ao entrar no estúdio encontrei Geraldo Cavalcanti, velho companheiro do departamento esportivo, sentado numa cadeira e com os pés na outra. A rádio transmitia o jogo Campinense e CSA de Alagoas, diretamente de Campina Grande. Então gritei:

– Preciso falar agora mesmo, passe o som – disse resoluto, encaminhando-me ao microfone do estúdio.

Geraldo espantou-se com a inesperada intromissão e estendeu a mão para ligar o microfone, sem entender o motivo daquela estrepitosa chegada, mas imaginando tratar-se de algo muito grave por, conhecer a minha serenidade. Então, interrompendo a transmissão do jogo, fiz um apelo aos soldados do Corpo dos Bombeiros para seguirem com urgência até a Lagoa para salvar as crianças ocupantes do barco, que estava afundando.

Na volta encontrei todos desesperadas. Ainda se podia ver a pessoas sobre o barco, que não afundara totalmente, se debatendo nas águas. Era um caos, as pessoas em desespero, tanto os que observavam por se mostrarem impotentes para esboçar qualquer ação por temerem também sucumbir com as vítimas, quanto os que afundavam. Então começou a chegar o socorro dos bombeiros, que ouviram a minha convocação durante a transmissão do jogo.

O corpo tornava-se pesado porque perdia o ar que os inflava e os mantinha na superfície. Por fim, tomados pelo espasmo da glote nada mais podiam fazer com a parada respiratória e posteriormente a parada cardíaca.

Aqueles que sabiam boiar durante algum tempo e souberam de alguma forma esperar a chegada dos bombeiros com sua lancha, boias e profissionais acostumados a esse tipo de salvamento, conseguiram sobreviver. Um soldado da PM que mergulhara para ajudar as vítimas havia retirado duas crianças, mas não foi mais visto depois que voltou para buscar a terceira.

Presenciei também, no dia seguinte, da ação dos bombeiros convocados para a busca dos cadáveres, do drama das famílias no Instituto Médico Legal (IML) para a liberação dos corpos e do desespero, no sepultamento, numa história arrepiante, pungente e de grande comoção. Resultado: 35 pessoas morreram afogadas, dentre elas 29 crianças. Cerca de 80 foram salvas pelos bombeiros.

 

Kindle/ Amazon, Link: BODJFZB2SK  / Livro impresso – esgotado

 

Mapa do Centro de João Pessoa – PB (Foto: Arquivo pessoal)

Mais Posts

Tem certeza de que deseja desbloquear esta publicação?
Desbloquear esquerda : 0
Tem certeza de que deseja cancelar a assinatura?
Controle sua privacidade
Nosso site utiliza cookies para melhorar a navegação. Política de PrivacidadeTermos de Uso
Ir para o conteúdo