Hannah Arendt, ao analisar os julgamentos do nazismo, cunhou o conceito da banalização do mal. Ela mostrou que pessoas comuns, aparentemente “normais”, são capazes de cometer atrocidades apenas por seguir ordens, sem refletir sobre suas consequências. Hoje, esse “não-pensamento” ganha novas roupagens: o radicalismo nas redes sociais, a cultura do ódio transformada em entretenimento, e a polarização que contamina até os espaços onde antes reinava a lógica da colaboração, as empresas.
Se antes o risco parecia restrito ao debate político, agora ele atravessa muros corporativos e ameaça diretamente o clima organizacional, o trabalho em equipe e a cultura de resultados. A pergunta é inevitável: qual o papel da liderança em um cenário tão complexo?
A polarização que não fica na porta da empresa
Uma pesquisa recente da Edelman (2025) mostrou que 64% dos brasileiros sentem ressentimento em relação a governos e empresas, acusando-as de servir a interesses restritos. Esse clima de desconfiança não fica na esfera pública, ele invade o ambiente de trabalho.
Outro dado impressiona: levantamento da Nexus revelou que 47% dos brasileiros já boicotaram marcas por desrespeito ou discriminação, número que sobe para 59% quando entram em pauta posturas éticas ou políticas. Isso significa que o comportamento de uma empresa ou de seus funcionários pode gerar perda real de clientes e reputação.
Dentro das organizações, a situação também preocupa. Um levantamento da Aberje mostrou que 36% dos profissionais que sofreram discriminação no ambiente de trabalho apontaram a orientação política como o motivo. A polarização, portanto, já é um fator concreto de desgaste e de risco para as empresas brasileiras.
O “não-pensamento” dentro do escritório
No dia a dia corporativo, a polarização assume formas sutis: colegas que deixam de colaborar por divergências ideológicas; líderes que se calam diante de comentários de ódio em grupos internos; decisões enviesadas pela pressão de bolhas digitais. A lógica da “tribo” substitui a lógica da equipe.
E quando a cultura do ódio se infiltra, ela corrói silenciosamente: aumenta a rotatividade, mina a inovação e coloca a saúde mental em risco. Pessoas passam a sentir que não pertencem ao espaço em que trabalham. E um time que não se sente seguro não produz, não cria e não permanece.
O papel inadiável da liderança
É nesse contexto que a liderança é chamada a se posicionar. Liderar, hoje, não é apenas entregar resultados financeiros, é proteger a cultura organizacional contra a contaminação da polarização. Isso exige coragem e clareza.
O líder precisa ser capaz de:
• Reconhecer sinais de polarização no ambiente: piadas de mau gosto, exclusões sutis, disputas políticas em espaços de trabalho.
• Promover pensamento crítico: criar espaços de diálogo em que seja possível discordar sem destruir a relação.
• Defender valores claros: a cultura da empresa precisa ser mais forte que qualquer polarização. Quando não há clareza, abre-se espaço para que a ideologia ocupe o vácuo.
Políticas claras e práticas necessárias
Se queremos blindar as organizações contra a escalada do ódio, não basta boa vontade. É preciso desenhar regras do jogo de forma transparente:
1. Políticas de RH atualizadas – códigos de conduta que equilibrem liberdade de expressão com respeito mútuo, deixando claro que ataques ideológicos ou discriminatórios não têm espaço.
2. Treinamentos recorrentes – respeito ao ser humano, empatia e gestão de conflitos precisam sair do discurso e entrar na prática.
3. Propósito como bússola – quando as pessoas entendem que trabalham por algo maior que disputas partidárias, a energia se redireciona para resultados e colaboração.
4. Clima monitorado – pesquisas internas, escuta ativa e canais seguros para denúncias ajudam a identificar tensões antes que virem crises.
O risco de omissão
Campanhas como #DemitaExtremistas, sejam progressistas, liberais ou conservadores, sem distinção, refletem a pressão social sobre as empresas para que não sejam cúmplices de discursos de ódio. O silêncio, nesses casos, também é uma forma de posicionamento. Omissão pode custar caro: reputação arranhada, talentos perdidos e consumidores revoltados.
O líder que se omite diante da cultura do ódio não está sendo neutro, está sendo permissivo.
Conclusão: entre ética e estratégia
O ambiente de negócios não está imune ao espírito de época. O ódio e a polarização que dominam as redes sociais ecoam nos corredores das empresas. Mas há uma diferença crucial: enquanto na arena política a divisão é combustível, no mundo corporativo ela é veneno.
Arendt nos alertou para os perigos do “não-pensamento”. Hoje, cabe às lideranças transformar esse alerta em prática: defender o ser humano, cultivar o respeito e promover uma cultura que valorize resultados sem abrir mão da ética.
Não é apenas uma escolha moral, é uma questão de sobrevivência organizacional. Afinal, nenhuma empresa cresce sustentavelmente em meio ao caos do ódio.