Os idiotas vira-latas vencerão?

Por Durval Leal, cineasta e produtor cultural

Desde menino aprendi que ler era uma forma de sobrevivência, de me esconder das minhas incertezas e frustrações de adolescente. A biblioteca de meu pai, comunista autodeclarado e intelectual frustrado, como ele se dizia, e como me sinto, foi minha trincheira contra a burrice a ser estabelecida. Ali, entre os livros gastos, encontrava-me inicialmente com o “Tesouro da juventude” Zé Lins do Rego, Machado de Assis, Jorge Amado, Érico Veríssimo, João Ubaldo, por alguma graça do destino, as páginas submersas de Júlio Verne. Lembro de passar tardes mergulhadas em 20 mil léguas submarinas e viagem ao centro da terra e emergir, à tardinha, para as conversas no quintal de casa, onde se misturavam cachaça, filosofia, cronicas narradas e aquela risada sincera de quem ri do óbvio.

Nelson Rodrigues já estava lá, não em carne, mas em espírito. Meu pai, que repetia frases dele como quem recita evangelho sarcasticamente, dizia que “os idiotas vão dominar o mundo, não pela qualidade, mas pela quantidade”. Eu, moleque, ria sem entender. Hoje, adulto e um presunçoso calejado, vejo que ele tinha razão. Os idiotas não só dominaram como ganharam passeata própria, trios elétricos e camisetas verde-amarelas fabricadas na China.

Cresci ouvindo também Darcy Ribeiro, tive o prazer de conhecê-lo, digo estar com ele por intermédio, em um encontro de Silvio Tendler e Vladimir Carvalho, numa tarde, talvez fictícia, em Brasília, pois não fiz um selfie do grupo, lá estava minha infância “de vez”, ou o pós adolescente em amadurecimento, em torno de brasileiros descomunais que satirizavam a compra do congresso por um tal de Sérgio Mota, o PC Farias ou Zé Dirceu do plantão da época. Darcy nos esfregava na cara a tal síndrome de vira-lata — a doença nacional de olhar para fora, venerar o estrangeiro e desprezar o que é nosso. Ele falava de um povo colonizado mentalmente, sempre de joelhos diante de qualquer potência que nos ofereça migalhas. Ontem, 7 de setembro, vi esse diagnóstico ganhar vida em carne e osso: milhares de cidadãos travestidos de patriotas, mas tremulando, com orgulho servil, a bandeira dos Estados Unidos. Não era ironia, era devoção.

A cena era de um realismo grotesco digno de Nélson Rodrigues. O Brasil, no dia de sua independência, celebrando a dependência. O povo, convocado para gritar contra a corrupção e pela soberania, esticava os braços para o mito, aquele que chamam de Messias, mas que não passa de uma caricatura tragicômica: um ex-militar de caserna medíocre, misógino, golpista e delinquente de ocasião. O herói de papelão que, para muitos, virou mito, e que transformou a política em culto de seita, com hino, camiseta e aplauso para cada absurdo.

Mas voltemos ao quintal de casa. Era lá que eu via, no riso dos amigos do meu pai, o verdadeiro espírito crítico: rir do óbvio, desmontar a presunção, chamar o idiota de idiota. Hoje, quando ligo a televisão e vejo um cortejo de brasileiros brandindo a bandeira americana no coração da Avenida Paulista, não me resta dúvida: Nélson acertou na mosca. O idiota venceu.

E não se trata de um idiota inocente, aquele que apenas tropeça na própria ignorância. Não. Estamos diante do idiota útil, figura central da política brasileira contemporânea. Ele veste a camisa da seleção, grita contra o comunismo sem nunca ter lido Marx, e acredita que Trump é a reencarnação de Dom Pedro I, que gritará independência ou morte ao STF. Esse idiota não pensa, apenas repete. Ele não discute, berra. Não dialoga, aponta o dedo. Não enxerga o Brasil, repassa pôster do Instagram, mas sonha em Miami.

Darcy Ribeiro diria que essa gente encarna o mais profundo fracasso de nossa formação nacional. Um povo que não se reconhece no próprio espelho, que se envergonha da própria língua, que chama a própria cultura de atraso. Também, com um pouco de crueldade, poucos conseguem transmitir o que pensam em um paragrafo. O vira-lata que acha bonito latir em inglês. Não me surpreende que, em plena data da independência, tenham ido prestar continência ao império alheio. É a prova viva de que Darcy falava de nós, e não de abstrações.

Nélson, por sua vez, se divertiria com a cena. Talvez escrevesse uma de suas crônicas cruéis, retratando a Avenida Paulista como um palco de tragédia e farsa. Ele diria, sem pestanejar, que o brasileiro de ontem não foi às ruas por patriotismo, mas por ressentimento com a falta do papel, o higiênico barato. Porque o idiota é ressentido por natureza: odeia o vizinho, inveja o colega, desconfia da própria sombra, e não reconhece seus odores. Ao se vestir de verde-amarelo, ele acredita que ganha importância, que vira protagonista de uma história que não entende. Mas, no fundo, não passa de figurante.

E o mais trágico é que essa multidão de idiotas úteis legitima os piores crimes contra a nação. Imaginem um americano traindo os Estados Unidos, pedindo a Putin ou Xi Pinping que punam a América, seriam fuzilados??? Gritam contra a corrupção, mas aplaudem ladrões de orçamento secreto e juram amores por uma anistia para bandidos. Falam em liberdade, mas querem censurar livros, professores e artistas. Clamam por moralidade, mas seguem líderes que enriquecem à sombra da fé e da mentira. Se há uma definição para a esquizofrenia política brasileira, ela é essa: um povo que acredita lutar contra a tirania enquanto pede de volta a ditadura. Realmente criou-se um no idiota.

Darcy Ribeiro dizia que o Brasil não deu certo ainda, mas não se desesperava: acreditava que daria certo no futuro, pela teimosia do povo, pela capacidade de reinventar-se. Eu já não sei se Darcy teria hoje o mesmo otimismo. Com tamanha idiotice estabelecida em tos os níveis de oportunismo. Talvez, diante da cena patética de ontem, ele lamentasse que a síndrome do vira-lata tenha se transformado em epidemia. O Brasil que dança com Trump e reza por Bolsonaro parece não querer dar certo. Parece satisfeito em ser quintal, seja dos Estados Unidos, seja de qualquer Messias improvisado.

E o que sobra a nós, que ainda acreditamos no poder da crítica, da leitura e da reflexão? Rir, como fazia meu pai no quintal. Rir do óbvio, mesmo que doa. Porque, como dizia Nélson, o idiota não só está entre nós: ele é a maioria. E quando a maioria marcha, pouco importa se é para o precipício.Ontem, o 7 de setembro deixou claro: não celebramos a independência, celebramos a servidão voluntária. Não vimos patriotas, vimos colonizados voluntários, vestidos de verde-amarelo, mas ajoelhados diante da bandeira americana. O Brasil, que poderia ser nação, contenta-se em ser caricatura.

E se Nelson Rodrigues tivesse de resumir o espetáculo, diria, sem rodeios: “Os idiotas venceram. Eles dominam o mundo. E o farão não por mérito, mas pela quantidade”. Darcy Ribeiro acrescentaria: “É o nosso fracasso histórico, a síndrome do vira-lata transformada em projeto político”. Eu, entre um gole de cachaça e outro, com saudade do meu pai, apenas confirmo: ontem o Brasil mostrou ao mundo que prefere ser esgoto de Miami do que dono do próprio destino. O pior é que, no palco da tragédia nacional, os idiotas são a plateia e também os atores.

LEMBRANDO… LULADRÃO!!!

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