Rui Leitão

Jornalista e escritor.

Geral

“O último desejo”


21/11/2013

Foto: autor desconhecido.

 

Noel Rosa morreu aos 26 anos de idade, mas nos deixou um legado musical dos mais ricos em termos de poesia e melodia. Em 1937, já em avançado estado da tuberculose, doença que o matou, escreveu “O ÚLTIMO DESEJO”. Era uma carta de despedida endereçada a Ceci, bailarina de cabaré, por quem se apaixonara perdidamente. A letra da música teria sido entregue a ela poucos momentos dele vir a falecer.

“Nosso amor, que eu não esqueço/e que teve o seu começo/numa festa de São João”. Noel Rosas começa sua declaração de amor, registrando a oportunidade em que essa paixão avassaladora teria se iniciado. Num ambiente de festa, numa noite de São João, onde tudo é alegria, comemoração, confraternização. Não poderia haver melhor lembrança de um primeiro encontro entre duas pessoas que se apaixonaram, portanto, tornando-se inesquecível. O foguetório e os balões, característicos da festa junina, marcaram o principiar desse amor que o compositor relembra no seu leito da morte.

“Morre hoje sem foguete/sem retrato e sem bilhete/sem luar, sem violão”. A doença grave a que estava acometido, já sinalizava também a morte desse amor. Contrariamente ao cenário do seu princípio, ele se findava com a visão única de um quarto fechado, triste, sem foguetes pipocando ao ar, sem um retrato dela para ver nesse derradeiro momento da sua vida, sem um bilhete em mãos que pudesse sentir a emoção dessa paixão por parte de sua amada, sem poder vislumbrar a beleza do luar, tão simbolicamente apropriado para encanto dos enamorados, e sem o violão, seu companheiro de sempre, instrumento em que manifestava romanticamente seus sentimentos.

“Perto de você eu calo/tudo penso e nada falo/tenho medo de chorar”. A paixão muitas vezes tem esse poder de inibir as pessoas, deixá-las muda, sem condições de exprimir, verdadeiramente, o que sentem e o que desejam falar. Na cabeça mil pensamentos, mil formas de se declarar, mil frases que pudessem demonstrar a força desse amor, mas ao se aproximar, mistura-se tudo, e nada do que havia planejado torna-se efetivamente prático. E, nesse silêncio, tem receio de que não se contenha e por lágrimas expresse toda a sua angústia de não poder falar o que queria para a sua amada.

“Nunca mais quero seu beijo/mas meu último desejo/você não pode negar”. Na verdade quando diz “nunca mais quero seu beijo”, não é a afirmação de negação desse desejo. Como não querer mais o beijo da mulher que ama? O que ele quis dizer é que esse beijo se tornava impossível, porque ele não queria transmitir a doença para ela. Todavia, havia um último desejo a ser realizado, e a um derradeiro pedido não há quem possa se negar a atender, até por uma questão de compaixão.

“Se alguma pessoa amiga/pedir que você lhe diga/se ainda me quer ou não/diga que você me adora/que você lamenta e chora/a nossa separação”. Quer ter, pelo menos, o consolo de que ela torne público que o amou, que o término do relacionamento é motivo de tristeza e de lamentação para ela. Quer morrer sabendo que ela o adora. Isso o deixará menos infeliz nesse momento em que sua vida se finda.

“Às pessoas que eu detesto/diga sempre que eu não presto/que meu lar é o botequim/que eu arruinei sua vida/que eu não mereço a comida/que você pagou pra mim”. A sua memória, interessa que seja de boa imagem, somente para ela e seus amigos. Aos que, em vida, não compartilharam de sua amizade, ou os desafetos, pouco importa que guardem bom conceito dele. Então pede que ela fale para eles que “que não presta”, que era um ébrio, viveu permanentemente na boemia, e isso deu causa a aborrecimentos que arruinaram a vida dela, não fazendo por merecer, sequer, a atenção que ela lhe dedicou. Pode até não ter sido essa a realidade da história de amor deles, mas às pessoas que ele detestava queria que não se apiedassem desse fim do romance, que ele partiu conformado com a sua separação.

• Integra a série de crônicas “PENSANDO ATRAVÉS DA MÚSICA”.

 


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