Rui Leitão

Jornalista e escritor.

Geral

“O quereres”


08/01/2014

Foto: autor desconhecido.

 

Caetano Veloso brinca com as palavras na letra dessa música e faz, no seu conteúdo, um jogo de antíteses, contradições de sentimentos entre duas pessoas envolvidas emocionalmente. O dualismo presente no texto impressiona pela forma inteligente com que é colocado. Foi lançada em 1984 e é objeto de interpretação semântica e filosófica por muita gente, inclusive nas escolas.

Onde queres revólver, sou coqueiro/e onde queres dinheiro, sou paixão/onde queres descanso, sou desejo/e onde só desejo, queres não”. Enquanto um quer briga, conflito, debate, o outro quer paz, tranqüilidade. O amor ao material, o capital, a ganância, se contrapondo ao interesse nas emoções, no encontro apaixonado, na pureza de um romance. Afirma-se a dubiedade de intenções, quando um quer desejo, o outro reage com desinteresse.

“E onde não queres nada, nada falta/e onde voas bem alto, sou o chão/e onde pisas o chão, minha alma salta/e ganha liberdade na amplidão”. Continuam os contrastes. Nessa estrofe realça os contrários no “sonhar” e no encarar a realidade, no querer voar e no decidir-se ficar no chão, no sentir-se completo, sem nada faltar, e a vontade de ir em busca de novas conquistas, possuir mais.

“Onde queres família, sou maluco/e onde queres romântico, burguês/onde queres Leblon, sou Pernambuco/e onde queres eunuco, garanhão”. O responsável, organizado, disciplinado, enfrenta o irracional, o inconsequente, o irreverente. O poético, sentimental, piegas, se confrontando com o insensível, indiferente, frio. As posições físicas de localização estão distantes. O eventualmente assexuado, andrógino, contrariando o pervertido, o sedutor, o cativante.

“E onde queres o sim e o não, talvez/e onde vês, eu não vislumbro razão/onde queres o lobo, sou o irmão/e onde queres cowboy, eu sou chinês”. Quando um se posiciona firme, decidido, ao lado está o hesitante, o temeroso, o tímido. Quando enxerga com racionalidade, o outro não consegue compreender o sentido das coisas e das ações. Quando tem o espírito movido por descomprometimento, deslealdade, o outro é solidário, amigo, companheiro. Quando um tem a personalidade impaciente, provocadora, o outro é calmo,tolerante.

“Ah Bruta flor do querer/Ah Bruta flor, bruta flor”. O império dos desejos definindo o agir e o pensar, como se fossem flores germinando em terreno as vezes infértil.

“Onde queres o ato, eu sou o espírito/e onde queres ternura, eu sou tesão/onde queres o livre, decassílabo/e onde buscas o anjo, sou mulher”. Agir com expressão física, enquanto o parceiro se mostra leve como o espírito. Amar com afeto, meiguice, paixão, enquanto o outro faz sexo com sofreguidão, carência, prazer carnal. Desprezar as regras, as normas, os ditames sociais, enquanto o outro se diz fiel aos paradigmas, ao politicamente correto. Comportar-se como um puro, ingênuo, enquanto o outro se conduz insinuante, transgressor, instigante.

“Onde queres prazer, sou o que dói/e onde queres tortura, mansidão/onde queres um lar, revolução/e onde queres bandido, sou herói”. Os opostos no prazer e na dor, no ataque que fere e na recepção com carinho, na submissão e na insurreição, na postura ilícita e na atitude heróica.

“Eu queria querer-te e amar o amor/construir-nos dulcíssima prisão/encontra a mais justa adequação/tudo métrica e rima e nunca dor”. Ao registrar tantos contrastes com a pessoa que ama, o “eu lírico”, enfim busca a afirmação do ditado popular que diz: os opostos se atraem. Não obstante tantas diferenças no querer, no agir e no pensar, ele almeja encontrar o ponto de concordância, a linha de união, o elo de ajustamento. Quer que nessa junção se defina uma “dulcíssima prisão”, uma harmonia de entendimento que, mesmo forçada por circunstâncias, se transforme efetivamente em algo prazeroso, os dois acorrentados um ao outro pelo sentimento do amor.

“Mas a vida é real e é de viés/e vê só que cilada o amor me armou/eu te quero (e não queres) como sou/não te quero (e não queres) como és”. O amor apronta armadilhas inesperadas, e o personagem que canta a música, se surpreende ao ver que o envolvimento sentimental em que está integrado é um encontro de desiguais, ambos negando a forma de ser do outro.

“Onde queres comício, flipper-vídeo/e onde queres romance, rock`n roll/onde queres a lua, eu sou o sol/e onde a pura natura, o inseticídio”. E se mantém relacionando as dessemelhanças e divergências, como se, ao distingui-las, pudesse identificar a forma de encontrar a convergência tão necessária entre parceiros.

“Onde queres mistério, eu sou a luz/e onde queres um canto, o mundo inteiro/onde queres quaresma, fevereiro/e onde queres coqueiro/eu sou obus”. Quando um se mostra misterioso, o outro se apresenta clarividente. Quando um deseja ter seu próprio “canto”, o outro se sente nômade, cidadão do mundo. Quando um quer recolhimento, o outro quer festa. Quando quer paz, o outro promove o conflito.

“O quereres estar sempre a fim/do que em mim é de mim tão desigual/faz-me querer-te bem, querer-te mal/bem a ti, mal ao quereres assim/infinitivamente pessoal”. O que importa, apesar dos pesares, é que os dois se querem, ainda que alternando o “querer bem” e o “querer mal” reciprocamente. A distinção de personalidades nãos os afasta porque foram capturados na “cilada do amor”.

“E eu querendo querer-te sem ter fim/e, querendo-te, aprender o total/do querer que há/e do que não há em mim”. Afinal o “eu lírico” toma consciência de que nas contradições residem o “aprender”, a necessidade de “se acharem”, se adaptarem um ao outro, viver a aceitação e renúncia de parte a parte, para que assim frutifique a conciliação, a sintonia.

• Integra a série de crônicas “PENSANDO ATRAVÉS DA MÚSICA”.
 


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