Geral

UMA ARTE


22/06/2011

 Para Jailton

A arte de perder não tarda aprender;
Tantas coisas parecem feitas com o molde
Da perda que o perdê-las não traz desastre.

Perdi duas cidades, eram deliciosas. E,
Pior, alguns reinos que tive, dois rios, um
Continente . Sinto sua falta, nenhum desastre.

(Uma Arte, Elizabeth Bishop)

Novamente, os alunos, as aulas, os textos, são também matéria para crônicas. Por esse mês junino, ao invés de fogueiras e pamonhas, fiquei a pensar no poder transformador da Arte. Estudando a poetisa americana Elisabeth Bishop (1911-1979), que durante dezessete anos morou no Brasil, mais especificamente em Petrópolis e Ouro Preto, e que, ironicamente, ficou pelas terras de Cabral, graças à uma alergia à castanha de caju, desembarcou em Santos, para por aqui morrer de paixão ( com a arquiteta e paisagista Lota de Macedo Soares) e de inspiração. Este ano, se comemora o centenário de nascimento dessa mulher que não queria saber de glamour, mas como dizia João Cabral de Melo Neto, de uma “lente que filtrava o essencial”. Como parte do seu centenário, Bruno Barreto produz o filme A Arte de Perder, sobre o seu relacionamento com Lota, que é interpretada por Glória Pires, e a dramaturga Marta Góes, levou para os palcos a sua estória, com Regina Braga, no monólogo Um Porto para Elizabeth Bishop.

Estudando com os alunos, seu último e mais famoso poema, One Art, Elizabeth fala das grandes e pequenas perdas. Numa escolha de Villanelle (tradicional forma de repetição), o poema tenta fazer um paralelo entre a repetição da perda, que promete maestria, assim como o controle poético, articulando uma tensão entre a disciplina na vida e a força das circunstâncias.

E foi tentando delinear a relação entre o desejo e o mundo, que também vimos o filme In Her Shoes (Em seu lugar– EUA, 2005, direção Curtis Hanson), filme esse que tem o poema de Bishop como um fio condutor importante para o desfecho do conflito da sua estória. O filme, catalogado como comédia romântica , ou filme mulherzinha, mas que eu pessoalmente gosto, e num piscar de olhos (des)construo esse pré-conceito.

O Filme, conta a estória de duas irmãs, Rose e Maggie, interpretadas por Toni Colette e Cameron Diaz . Uma advogada bem certinha, infeliz com seu corpo, e com fetiche por sapatos de salto alto, todos empilhados num esconderijo do armário. A outra, uma irmã mimada e que apronta toda hora – sem dó nem piedade. Acha que somente através do corpo pode seduzir os homens, o mundo e ela mesma. Ainda por cima sofre de dislexia, para se esconder na incapacidade de ler, a sua também capacidade de superar os traumas e limitações, e perseguir assim, o seu sonho de atriz e celebridade.

Eis que lá pelas tantas, Maggie ultrapassa todos os limites e só lhe resta ir em busca do colo da avó (Shirley McLaine), que logo descobre a vadiagem da neta, e lhe obriga a trabalhar no asilo onde mora . Nessa virada de mulher-solteira-procura, ela visita um doente, um ex-professor de literatura, que logo lhe pede para ler o poema de Bishop One Art. Enquanto lê o poema, não só vence a dislexia, mais também tem assim seu momento de percepção da vida. Simultaneamente, enquanto lê o poema, imagens sobrepostas da sua irmã que também tem sua epifania pessoal, pedindo demissão do emprego, terminando o relacionamento com o chefe, e finalmente calçando seus sapatos, numa metáfora clara de empoderamento sobre sua própria vida, numa troca interessante e invertida, dos solado dos pisantes para os solados da vida. Ao ler sobre perdas, no poema de Bishop, Maggie se identifica com o trajeto das perdas do personagem, e se mostra sensível e até capacitada ao falar de poesia com aquele mestre ocasional.

Por conta dessa aula, tão rápida e eficaz, o que a poesia não faz! Mais tarde, no casamento da irmã, Maggie, ao invés de aprontar mais uma cena de mau gosto e estupidez, prepara uma surpresa romântica amorosa para irmã, pois chocar já não é seu desejo, ao invés, põe para fora todo a sua sexualidade poética, dessa vez, um outro poema, igualmente impactante, e também de um americano, e.e. cummings, i carry your heart with me, (poema esse que foi musicado por Zeca Baleiro), onde finalmente, Maggie declara todo o seu amor e afeição pela irmã, Rose. As duas transcendem suas limitações e picuinhas, e a poesia corre solta, no filme e na vida.

Pois então que dentre tantos assuntos mullherzinhas ou não, temas importantes, sugerem o filme, tais como: Competição entre irmãs; estereótipos: mulher sisuda x mulher sexy; fetiche dos sapatos/ dislexia x leitura de poemas; o poder transformador da arte e a força dos poemas para dialogar com as imagens e enredo; o próprio título do filme numa referência à troca de papéis das mulheres ; o tema do silêncio e das coisas não ditas; a arte de perder e finalmente a arte do perdão.

Em sala de aula, sempre temos uma pequena amostra do mundo lá fora. A diversidade é grande de tipos de alunos, como também de mundos e limitações diferentes. Uma diversidade para nos testar cotidianamente entre o que temos de melhor e pior. Um exercício rico de percepção, de humildade, e de aprendizado. Um aluno meu, jovem estudante interessado nas coisas das letras, mas de vida muito difícil, perdeu seus pais muito cedo, e mora sozinho desde a adolescência, trabalhando pelo seu sustento, e em cima da sua moto, buscando conhecimento e sentido para sua vida. Ao ler o poema e a vida de Bishop, me confessou que se identificou com a orfandade da poetiza, e através do seu percurso, pode também entender, o significado da poesia e da arte. E com isso ter algum alento, perspicácia para as agruras e vicissitudes da vida. Estabeleceu contato com o tema do poema, e descobriu, pelo menos começou esse percurso de descobertas, aquilo que todos, um dia temos a obrigação de fazer – termos a nossa própria epifania diante da vida, e que a arte pode sim, transcender uma vida difícil e tempestuosa. Na hora do relato, me emocionei, e tive a certeza de que são momentos assim, que vislumbro os desafios e retornos de ser professora, apesar de concordar com tudo que ouvi daquela colega Natalense no youtube.

E aí não pude deixar de viajar em alguns momentos epifânicos fílmicos e poéticos que fizeram mudanças fundamentais nas vidas dos personagens e da minha própria, através de Mrs. Dalloway( Virginia Woolf e um dia na vida de uma mulher); de As Horas ( Um livro e Mrs. Dalloway disse que ela mesma compraria as flores), dos filmes Balzac e a Costureirinha Chinesa (um livro, a revolução e um perfume francês); e Escrito nas Estrelas( um livro de William Blake o poder do acaso ); do conto The Canary (E o canto da morte da poetiza neozelandeza-inglesa Katherine Mansfield, e suas questões metafísicas sobre a nossa tristeza imanente); e last but not least – o filme Desejo e Reparação (onde somente a arte, nesse caso a literatura, pode re-escrever, re-inventar, resgatar, e transformar uma estória de Dor e Ressentimento).

E de sapato em sapato e de artes sobre artes, vou trilhando meu caminho, e quem sabe abrindo outros, tudo sozinha, com a importância dos alunos, ou quem sabe, tudo misturado.

E por que estamos em Junho: Feliz São João!

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa, 22 de junho, 2011



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