Geral

Um Sentir Feminista


19/04/2011



No horizonte virtual das possibilidades que foram deixadas pra trás deve haver um duplo meu, vivendo a vida que foi dos outros.
(Maria Rita Kehl em “Antiobiografia”)

Maria Rita Kehl, em sua crônica “Antibiografia” (O Estado de São Paulo, Fev. 20, 2010) fala que “As experiências perdidas constituem uma rede de lembranças legítimas. Pode até ser que o vivido…ocupe uma parte bem reduzida de nossas memórias. Penso que existe um acerto de saudades lotado de imagens do que se viveu só através de relatos alheio, da literatura e da imaginação.”

No último dia internacional da mulher, escrevi um texto sobre os livros das minhas estantes que contribuíram com o meu saber feminista, ou pelo menos os que fizeram parte dos meus caminhos, por vezes entrecruzados, de mulher, profissional, mãe, cidadã feminista, nem sempre numa ordem cronológica e clara. Pois, enquanto escrevia, outras referências foram surgindo, algumas concretas outras mais subjetivas, e lá fui eu tomando outras notas, e assim gerando outras crônicas, esta por exemplo.

São muitos os paus necessários para se fazer uma jangada. Ou uma fogueira. Bruxas? Pero las hay las hay!!! Um pensar e um saber então…anos a fio. Um percurso, um sentir. E de acordo com Kehl, o não visto ou vivido, também fazem parte da nossa antibiografia…

As pessoas, principalmente as mulheres, me perguntam se sou feminista. E muitas fazem questão de negar essa escolha/vivência política; por vezes até mulheres que são feministas também, isso é o mais curioso. E esse modos operandis, principalmente vivendis, não surge assim do nada. São muitas as circunstâncias que me fizeram uma feminista. Ter nascido numa casa feminina por exemplo é a primeira (somos quatro irmãs e minha mãe), e desde a mais tenra idade ter percebido inconscientemente, a famosa afrase de Simone De Beauvoir: “que ninguém nasce mulher, mas torna-se mulher”. Incomodava-me muitíssimo não poder fazer as coisas. E os meninos tudo podiam. Sábado à noite? Ficar em casa depois das dez. Muitas regras que nem sempre concordava, e as mulheres sempre em desvantagens. E desde muito cedo que saía transgredindo muitos desses limites a mim impostos, fossem dentro ou fora da minha casa.

E eis algumas das pistas desse percurso: Ter um pai até certo ponto moderno para a época; uma mãe com um pé na liberdade e outro no julgamento social; ter estudado nas Lourdinas – Ciências com Irmã Leônia; ter casado muito cedo; ter casado mais de uma vez; ter vivenciado a dor de uma separação precoce; ter tido filhos homens; ter parido partos, ditos normais; ter viajado muito; ter morado fora do país muito jovem; ter ficado um mês em Londres, e, apesar de já estar casada, dançar toda noite no Markee (e descobrir que o casamento não era a morte para uma jovem mulher; poderia sim ser algo maior que um confinamento na vida de um outro); ter feito mestrado na Inglaterra no final dos anos 80 e ver de perto o boom da literatura feminista (acesso a livros, práticas e saberes); ter brincado muito carnaval (casada inclusive e sozinha nas ladeiras de Olinda); ter ouvido Hair em demasia e visto Woodstock pela TV (eu queria ficar nua também correndo pelas colinas…!); ter feito Biodança por cinco anos; psicoterapia até hoje; Rita Lee e a cor Rosa Choque com “Mulher é Bicho Esquisito”…, e principalmente ter a mentalidade livre e uma certa urgência de chutar o balde, contribuíram. Mas não só. Ter lido livros que fazem o cânone ou não, da experiência das mulheres, fizeram de mim sim, uma Feminista, desde pequenininha.

Foi um caminho mais pelo sentir e só mais tarde pelo entender, participar, pensar, e contribuir. Desde o primeiro velocípedes, aos 3 anos de idade, que me sensibilizo com as diferenças, dificuldades, preconceitos, e violência na vida das mulheres. Outras referências presentes: as músicas de Chico Buarque, Olhos nos Olhos, Com Açúcar e com Afeto, Ana de Amsterdam, Mulheres de Atenas. Caetano Veloso e Eu sou Neguinha! Ou Leãozinho. Como diz Kehl: Ah! “ A lista das coisas perdidas não tem fim. Só as canções eu não deixei passar. As canções me salvaram de ficar fora do mundo. Estavam todas no ar, trazidas pelo vento diretamente para minha memória musica. Respirei as canções, sonhei canções, entendi o Brasil desde o primeiro samba…Vivi sempre a condição dessa cidadania dupla, uma vida no chão, outra no plano das canções que recobrem o mundo ou, pelo menos, o país em que nasci. As canções ampliaram o meu tempo, transcenderam o presente e, numa gambiarra genial, juntaram um monte de pontas soltas desde antes de eu nascer até.” Eu era uma garota, que amava os Beatles! E muito mais!

Também na agenda, a série de TV, Malu Mulher com a música Começar de Novo de Gonzaguinha, era um chororô toda noite… e começando às duras penas; ou ainda o programa TV Mulher com Marília Gabriela e Marta Suplicy, por entre fraldas do primeiro filho, e soluços. Conversas densas intermináveis e muitas abobrinhas também, com amigas (Sisterhood), indispensável: Vitória Lima, Vilani Sousa, Rosa Virginia Faraco, Nadilza, Liane Schneider, Flávia Maia, Sarita, Ângela Navarro/Inha, Lu Damasceno, Marcinha Lucena, Anne Marie, Lúcia Sander, Simone Schmidt, Genilda Azeredo, só para citar algumas. E claro ter três irmãs para nos trancarmos no quarto horas a fio confidenciando. Mulheres também como Lourdes Bandeira e Eleonora Menegucci, figuras emblemáticas do Feminismo no Brasil, e com quem tive o privilégio de trabalhar e ser amiga. O Grupo Cunhã Coletivo Feminista, do qual fui fundadora com muito orgulho. São tantas referências, que poderia ficar aqui citando receita de bolo…Mas receita de bolo também é coisa de feminista, e mais crônica sobre como fazer biscoitos!

Existe uma receita? Claro que não. Mas as minhas “Roads not Taken”, assim como o poema de Robert Frost, foram feitas dos caminhos também não percorridos, e de uma mistura disso tudo, e mais, pitadas dos filmes de Almodóvar e Fellini; ter vivido numa cidadezinha encantadora e provinciana que nem João Pessoa, mas com um pé nas metrópoles sempre…; ter lido muito cartoon e me apaixonado pelo Recruta Zero, Zé Carioca, Mandrake, Fantasma, Penauts, Luluzinha, e os Bolinhas; observado a vida das empregadas domésticas (até hoje me compadeço da vida dessas mulheres extraordinárias); gostar de dançar e também querer sair sozinha à noite com o namorado e sair.

Junto com esses queridos textos das minhas estantes, filmes também rosnaram nos meus ouvidos/olhos pelo leão da Metro – que Kehl também comenta: “Viva os livros e filmes que não li nem vi. Por conta deles estou salva do tédio, até morrer.” Eis alguns : O Piano, As Horas, Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, Fale com Ela, Sylvia, Tudo sobre Minha Mãe, A Escolha de Sofia, João e Maria, Volver, Monólogos da Vagina, O Amante de Lady Chatterley, Mrs. Dalloway, Entardecer, Momento de Decisão Vicky Cristina Barcelona, Madame Bovary, A Primeira Noite de Um Homem, Balzac e a Costureirinha Chinesa. Ih! Filmes? assunto para outra crônica!

Termino, com mais uma citação de Kehl, assim como todas as outras que foram citadas nesse texto: “As saudades do que eu queria ter feito e não fiz se constroem de trás pra frente. É depois, só depois, que você se dá conta de que prestou atenção ao que acontecia à sua direita e não percebeu algo muito mais interessante que se passava à esquerda. Ou vice-versa.”

Boa Páscoa!

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa 17 de abril, 2011.



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