Brasil & Mundo

Travestis encaram seus medos para voltar para a escola e sair da rua


26/01/2015

Aos 24 anos, a transexual Ciara nunca conseguiu um registro na carteira. Não foi falta de força de vontade. Aos 13 ela já panfletava em sinais de trânsito pela manhã e estudava no período da tarde. Abandonada pelo pai ainda bebê, ela nunca teve uma boa estrutura familiar. A mãe, sem aceitar a transexualidade da filha, também não a ajudava e deixou para a avó a incumbência de tomar conta da menina. A saída que Ciara encontrou para sobreviver foi se prostituir para conseguir sua independência e ainda ajudar a avó deficiente visual a comprar remédios.

Se em casa ela não teve o apoio de que precisava para ter uma adolescência como deveria, na escola a vida era ainda mais complicada. Do lado esquerdo da sala de aula sentavam as meninas, do lado direito sentavam os meninos. Para ela, restava sentar no meio da sala.

"Todo mundo foi mudando em relação aos hormônios e eu parei no tempo. Fiquei pequenininha, a voz não engrossou, deixei meu cabelo crescer. Foi aí que algumas crianças começaram a me atormentar, me chamavam de boiola, de viado", conta Ciara. "Começaram a me roubar, me esperavam em frente do portão para me agredir, [os meninos] ameaçavam se eu não quisesse fazer alguma coisa [sexual]. Por isso eu resolvi sair da escola. É horrível chegar ao colégio e todo mundo apontar para você."

Sem completar o ensino fundamental e nenhuma experiência profissional na carteira de trabalho, Ciara não encontrou oportunidade com nenhum empregador. No entanto, ela sabe que o principal motivo para ouvir tantos ‘nãos’ é o fato de ser uma mulher transexual. "Um dia, um gerente de loja rasgou o meu currículo na minha frente. Disse: ‘Você não tem nada no CV e ainda é viado? Não quero você na minha loja’", lembra ela, que sonha entrar na faculdade de história ou psicologia.

Na quinta-feira (22), ela se viu diante da primeira chance de colocar sua vida nos eixos. Ciara foi uma das cem travestis e transexuais selecionadas para participar do programa “Transcidadania”, da prefeitura de São Paulo, e já está matriculada no Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (Cieja) do bairro do Cambuci, Zona Sul da cidade.

Bolsa de estudos de 840 reais mensais

Desenvolvido pelo Centro de Combate à Homofobia (CCH), da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da gestão do prefeito Fernando Haddad (PT), o programa é uma experiência inédita na América do Sul. Com lançamento oficial previsto para a próxima quinta-feira (29) e um custo de R$ 3 milhões, o "Transcidadania" oferece bolsas de estudo no valor aproximado de R$ 840,00 para travestis e transexuais voltarem para a escola, fazerem cursos técnicos profissionalizantes e aumentarem sua empregabilidade, tornando mais fácil a tarefa de se inserir na sociedade.

Durante um período de dois anos, as participantes terão de fazer 30 horas semanais de atividades. Em um primeiro momento, elas vão fazer supletivo para completar o Ensino Fundamental ou Ensino Médio em dois Cieja da capital paulista, o do Cambuci e outro no centro da cidade. Após completarem os estudos, as travestis e transexuais poderão ingressar em cursos técnicos por meio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec).

Segundo Rose Ribeiro, integrante do CCH, os funcionários e professores das duas escolas receberam treinamento especial para evitar que as novas alunas passem por algum constrangimento ou discriminação dentro da sala de aula. Além disso, o desempenho escolar e a integração com os outros alunos serão acompanhados de perto pela equipe do projeto, formada por dez pessoas, incluindo psicólogos e pedagogos. “A equipe atenderá as integrantes do programa, mas também receberemos os outros alunos caso haja necessidade”, diz Rose.

Valéria Vogue

É justamente a relação com os outros alunos que preocupa a travesti Valéria Vogue, de 47 anos, outra participante do Transcidadania. Ainda adolescente, ela foi expulsa da casa dos pais, que não aceitavam a sua identidade de gênero. Consequentemente, teve de interromper os estudos na 6ª série. Em 2006 voltou a estudar, depois de anos sem conseguir um emprego formal por conta dos cabelos longos e do implante de silicone nos seios.

“Fui no primeiro dia de aula e no segundo já não fui mais. Quando cheguei foi um escândalo, todo mundo começou a tirar sarro de mim, a rir de mim, então não voltei. Estou um pouco assustada, com receio de lidar com os outros alunos”, confessa Valéria, sem esconder sua insegurança.

Ainda assim, ela está confiante de que tudo dará certo, principalmente por saber que outras pessoas na mesma situação que a dela estarão na escola. “É uma ótima ideia, porque a gente vai ter amigas, vai se sentir mais segura. Eu achei ótimo o projeto, estou adorando”, conta ela, que sonha estudar gastronomia depois de completar o Ensino Médio.

Alessandro Melchior, coordenador de políticas públicas para LGBTs da Prefeitura de SP, sabe do risco de algumas participantes sofrerem transfobia de outros alunos dentro e fora da escola, mas lembra que o acompanhamento delas será individualizado e que o programa ainda está em fase de teste.

“Foram cem escolhidas justamente pela falta de experiências parecidas e o pioneirismo do projeto. Vamos começar com um número pequeno, mas expressivo o suficiente para conseguir avaliar os resultados”, conta. "A intenção é aumentar a abrangência do programa."

Para a participante Cris, de 39 anos, a oportunidade de terminar os estudos e fazer um curso profissionalizante é o suficiente para passar por cima de seu receio de sofrer discriminação. “Vou encarar a realidade. Eu vou entrar de cabeça aberta e espero ser recebida de cabeça aberta também." As aulas começam já no próximo dia 4 de fevereiro para as cem participantes.



Os comentários a seguir são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site.
// //