Política

Por 2014, Dilma prorroga Comissão da Verdade

Eleições


29/12/2013



 Decidida com cálculo político, a prorrogação do prazo de funcionamento da Comissão Nacional da Verdade por mais sete meses desvinculou das eleições do ano que vem os efeitos do relatório final das investigações sobre os anos de chumbo. As prováveis recomendações que devem constar no relatório – entre elas a polêmica revisão da Lei da Anistia – poderiam aprofundar as hostilidades entre a ala conservadora das Forças Armadas e desagradar o eleitorado conservador às vésperas da campanha.

“A presidente Dilma Rousseff detectou um clima pesado e driblou a polêmica. O relatório final – que seria divulgado em maio – poderia criar uma fumaça no processo eleitoral”, diz o cientista político Gaudêncio Torquato, experiente analista dos movimentos de caserna.
 

Segundo ele, nas duas últimas semanas aumentou a reação de oficiais de pijama, entrincheirados no Clube Militar, no Rio, contra o trabalho das comissões empenhadas em reconstituir o período de arbítrio pela relembrança dos casos de tortura, execuções de militantes da esquerda armada e desaparecimentos forçados. O movimento, diz Torquato, tem como alvo despertar o sentimento corporativo dos militares da ativa.

De acordo com a nova Medida Provisória, publicada na quarta-feira, a CNV terá mais 12 meses de funcionamento, completando o trabalho em dois anos e sete meses. Amparada por outras 140 comissões estaduais, municipais e de entidades da sociedade civil, A CNV terá de reconstituir os anos de chumbo pela história das vítimas e romper o impasse que impede a localização do paradeiro dos desaparecidos entre 1968 e 1976.

O relatório final só será conhecido em 16 de dezembro do ano que vem, portanto, já na transição para um novo governo, período propício inclusive para tentar virar a página dos anos de chumbo através de uma saída pactuada com as Forças Armadas.

“O esclarecimento não depende de prazo. Depende das informações de quem matou, torturou ou sumiu com corpos”, diz o presidente da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, Wadih Damous. Segundo ele, o grande obstáculo para elucidação do período está nas Forças Armadas, que “não colaboram e nem abrem seus arquivos”.

“O que sai é na base do saca rolha”, reclama o vereador Gilberto Natalini (PV), presidente da Comissão Municipal de São Paulo. Uma das descobertas, lembra ele, em novembro do ano passado, foi por acaso: a polícia gaúcha investigava o assassinato do ex-coronel do Exército Julio Miguel Molina Dias, ex-comandante do DOI-Codi do Rio, e encontrou na residência deste documentos revelando a entrada (sem registro de saída) do deputado Rubens Paiva no estabelecimento militar e detalhes sobre o atentado ao Riocentro.

Os documentos encontrados com o ex-comandante do DOI-Codi são os mesmos que o Ministério da Defesa vêm, sistematicamente, alegando que foram destruídos pelos órgãos de informação e repressão das três forças.

Há fartura de indícios reforçando suspeitas segundo as quais as principais informações foram retiradas ilegalmente dos arquivos das Forças Armadas e ficaram em poder de oficiais da linha dura que estiveram à frente das operações decisivas da repressão. O caso mais exemplar é do coronel Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió, a cara da repressão na Guerrilha do Araguaia. Ele guardou os documentos e só os revelou ao jornalista Leonêncio Nossa, autor de Mata!, a mais completa biografia de Curió.

As informações sobre os desaparecidos são guardadas a sete chaves. O coordenador da CNV, Pedro Dallari, diz que a decisão da presidente Dilma dá mais tempo para a elaboração do relatório final, mas não alimenta a possibilidade de um resultado que possa levar aos corpos.

“Assim como ocorreu em outros países, a comissão não esgotará as investigações. A estratégia é deixar uma cultura para a continuidade das investigações através de novas comissões”, afirma Dallari. A maioria delas encerraria os trabalhos em maio, mas aderiu à prorrogação.

“O prazo foi ampliado porque era muito curto” diz o jornalista Ivan Seixas, ex-preso político e coordenador da Comissão da Verdade paulista. Segundo ele, a decisão de Dilma, “correta e republicana”, indiretamente acaba tirando a possibilidade de o relatório final interferir na eleição.

“O importante é que o Estado brasileiro siga as recomendações que constarão no relatório”, afirma. As duas questões mais polêmicas em debate na CNV são uma medida governamental que abra ou resgate os arquivos das Forças Armadas _ seja através de documentos ou pelo depoimento dos oficiais _ e a possibilidade de mexer na Lei da Anistia (para levar criminosos ao banco dos réus) diante da nova composição do Supremo Tribunal Federal.

Críticas à CNV

O acirramento dos ânimos militares reflete o imobilismo da CNV que, em 20 meses de investigação, apresenta como resultado mais relevante o resgate da imagem do ex-presidente João Goulart, mas patina nas grandes questões e acelera no retrabalho. Os cerca de 500 depoimentos já tomados são, na maior parte, uma repetição dos relatos sobre violações existentes no acervo da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, que disponibilizou à CNV um acervo com 60 mil denúncias.

Nos bastidores, as críticas mais frequentes apontam a falta de audiências públicas que envolvam a população, ações pífias na busca dos desaparecidos e a ausência de interlocutor ou negociador que abra diálogo produtivo com as Forças Armadas.

As poucas audiências até aqui realizadas não acrescentaram informações. Além disso, viraram “palanque” para a ala militar conservadora criticar o governo, como ocorreu nos depoimentos do ex-chefe do Dói-Codi paulista, Carlos Alberto Brilhante Ustra, e do general Álvaro de Souza Pinheiro.

Em 2014, na tentativa de dar rumo às investigações, a CNV retomará as audiências públicas com dois temas barulhentos, a Casa da Morte – centro de tortura em Petrópolis, no Rio – e Guerrilha do Araguaia, o episódio mais forte dos anos de chumbo.

Gaudêncio Torquato diz que a elucidação seria facilitada com o aparecimento de um interlocutor “isento, gabaritado e independente”, capaz de negociar com a área militar. Ele afirma que, passados quase três décadas do fim do regime e às vésperas dos 50 anos do golpe civil-militar, os fantasmas golpistas estão exorcizados e não há riscos de quebra institucional por conta dos anos de chumbo. Mas acha que falta interlocução com a área militar e tem sugestão:

“O nome mais indicado é o do Aldo Rebelo (ministro do Esporte). Sua visão nacionalista e os conceitos de defesa da Amazônia são parecidos com o pensamento das Forças Armadas. Ele tem boa interlocução e é respeitado no meio militar”, afirma o cientista político.

Até o anúncio das sentenças do mensalão, segundo ele, o interlocutor ideal era o ex-deputado José Genoíno, que foi assessor especial do Ministério da Defesa. Os dois, curiosamente, têm suas histórias ligadas a Guerrilha do Araguaia. Aldo, como dirigente do partido que organizou o movimento rebelde, o PC do B, e Genoíno como ex-guerrilheiro.

Torquato acha que o caminho para um entendimento foi azeitado pela presidente Dilma Rousseff ao atender a área militar na questão dos caças, mas aponta que ainda falta o que chama de “um agrado”: o reequipamento das Forças Armadas, que estão sucateadas. O gesto derrubaria as alegações de revanchismo e ajudaria a virar a página do período.

 



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