Geral

No Chão do Banheiro


01/02/2011

 Para Lucas

Estava há pouco vendo no canal Globo News, uma entrevista com Elizabeth Gilbert (Comer, Rezar e Amar), quando ela dizia que começou o seu livro de sucesso, relatando uma cena em que chorava no chão do banheiro, às três horas da manhã, sem saber o que fazer da vida, num momento de decisão, que posteriormente daria um salto rumo à saída, experiência que lhe rendeu o livro e o sucesso de vendas, e da própria Gilbert. No chão do banheiro deu início assim o que seria um divisor de águas na sua vida artística e pessoal. E o mais interessante, que durante suas pesquisas ou depois de lançar o livro, muitas mulheres confessaram que, também já se viram nessa mesma encruzilhada, ou seja, às 3 da manhã , no chão do banheiro.

No mesmo momento, me identifiquei com a cena e com a encruzilhada existencial – nada mais paradoxal que o chão do banheiro! Concretude maior não há! E também, lugar onde já estive algumas vezes na vida. E que gracias à essa mesma vida, não fiquei lá, pelo contrário, o chão do banheiro é um ótimo lugar para mudarmos de lugar.

Em uma das vezes em que ocupei esse pensar existencial, estava vivendo um momento de cores mais cinzas. Havia conquistado uma bolsa de estudos para passar um ano na Inglaterra. Uma bolsa do Conselho Britânico e Capes, irrecusável. Logo eu, que sonhara com aquela oportunidade a vida toda. Quando recebi o resultado da façanha (fui a única selecionada do nordeste), saí pulando e chorando de alegria, qual Gene Kelly na chuva, pela Av. Conselheiro Aguiar, Recife. Mas também, a partir daí, desenvolvi uma angústia premente, pois tinha um filho de 2 anos, e a bolsa não dava direito à família. E naquele momento, não era hora de final feliz. E assim, como na estória de Gilbert, eu estava no limiar do abismo, e precisava Comer, Rezar e Amar. Viajar sem meu filho Lucas, me parecia impossível de suportar, abdicar da viagem, mais impossível ainda. Fiz minha escolha de Sofia, escolhendo viajar sozinha, por quase uma ano, em épocas onde não existia nenhum recurso de tecnologia, correio era demorado, e telefone caríssimo. Foi uma escolha maior que meu desejo, penso nisso até hoje e constato que assim como Laura Brown, personagem do filme As Horas, escolhendo viajar sozinha, estava optando pela vida. Uma vida toda minha. Pode até parecer uma escolha egoísta, mas desde cedo aprendi que, devemos sim, ter a nós em primeiro lugar, quando o assunto é a vida, ou as rédeas da nossa estrada.

Lembro que as pessoas não perdoavam: Como viajar sozinha? Deixar um filho pequeno entregue ao pai? Nem a sociedade, nem nós mulheres tão pouco, apoiamos que uma mãe possa fazer nada em benefício próprio. A não ser por motivo de doença. E uma vez, uma amiga me perguntou: “Ana, se você estivesse precisando de tratamento em São Paulo, você não aceitaria melhor essa viagem?” E eu prontamente : “Sim”. Então porque só à beira da morte concordamos com nossa jornada dias adentro? Fiquei a pensar e decidi. Eu vou. Ou melhor, a vida decidiu por mim. Mas era muito doloroso cada vez que eu olhava para meu pequeno, imaginá-lo longe, embora tivesse toda a certeza de que não o estava abandonando, mas partindo em busca de mim. Parti aos prantos. E aos prantos vivi os primeiros meses. Tive depressão e todas as síndromes. Lembro da minha peregrinação pelo Consulado Brasileiro, chorando na sala do Cônsul, (um paraibano, Oto Maia, gente finíssima, que se solidarizou comigo, pois sabia e já tinha vivido tal experiência), me indicou médico, apoio, e solitariamente, junto com minha irmã Teca, que assustada e se preparando para casar, não entendia o meu percurso sombrio. Vagamos as duas por Trafalgar Square, sem achar graça nem nos leões turísticos, nem nos turistas, nem em Londres tão pouco. A sensação era de que estava encurralada. Não admitia voltar, nem admitia ficar. Fiquei a imaginar a dor de Hamlet, e eu Ophelia, vislumbrando um rio que passava na minha vida…

Nos dias seguintes, tive que viajar sozinha para Paris, e de madrugada (minha irmã tinha sido extraditada por problemas do visto), e em pleno Canal da Mancha, sozinha e deprimida, ouvindo o pio das Gaivotas, e amanhecendo numa garre qualquer , e só sabendo balbuciar Bon Jour, tive que rezar para ter forças. E tive. Ao avistar NotreDame, ou os vitrais da Catedral de Chartres, agradeci.

Ao chegar à University of Warwick, onde por nove meses fiz parte do meu Mestrado, a primeira impressão foi a de uma árvore com folhas amareladas, em frente ao meu quarto; árvore essa que acompanhei durante todas as estações: outono amarelo, inverno marrom, e novamente primavera verde. Nunca tive um dia sequer sem entrar em contato com aquela árvore. A árvore da vida. A árvore do meu sustento subjetivo, que fazia ver o tempo fluir, mais do que passar.

Minhas amigas de quarto, dos quatro cantos do mundo: Equador, Espanha (País Basco), Bangladesh (George Harrison todo dia!) e China. As chinesas, eram duas mulheres lindas, que faziam parte da primeira leva de chineses que saiam para estudar fora, na abertura do seu país. E em estado pior que o meu, haviam deixado seus bebês recém nascidos, por um ano, também para se formarem. E chorávamos juntas. Elas me achavam um bicho exótico, que cozinhava feijoada, dançava samba, bebia caipirinha e tinha fotos de biquine grávida na parede. Elas cantavam canções lindas enquanto tomavam banho, e eu, emocionada, ouvia.

De longe, recebia fotos de Lucas que crescia, que fazia aniversário, que caia e levava ponto no supercílio, que saía e se divertia com o pai. Esse me escrevia cartas com novidades domésticas que nunca sonhei escutar: febre alta de Lucas, reunião da escola, faltas ao trabalho para ficar com o menino e muitas outras. Ficava feliz de ver de longe, e sob efeito da aflição aguda, um pai que crescia junto ao filho, e que juntos , estabeleciam uma relação de amor, sem a mãe para intermediar. Coisa preciosa que ficou como boa herança. Tudo na vida tem um preço. E nem sempre é só de carestia que se fazem às experiências. De longe, lembro que o meu cartão postal preferido era o de uma figura voando no abismo…

Comer : aprendi a fazer Tiramisu e Pasta à Melanzana, e todas as delícias da berinjela, com meus amigos italianos; troquei receitas de curry com Safia, a tal roommate de Bangladesh; fiz Tzatzik (salada de pepino, alho, iogurte com hortelã) com os rapazes (Panos e Yannis) das ilhas Tessalonika; e perdi o medo das panelas. Fazia risoto e sopas; e aos domingos ousava na feijoada improvisada. No meu aniversário de 1987, coloquei 47 pessoas das mais diversas nacionalidades, na minha cozinha pequenina, para dançar forró e samba. As chinesas não sabiam se eu era doida ou santa. Mas Martha Medeiros, que o diga: Somos as duas coisas.

Rezar: Rezei todas as Ave-Marias, em frente à tal árvore das estações; caminhando sob o fog para ir ao supermercado; na catedral de St. Paul, e em Westminster; sob o luar em Veneza ou nas cores terracota da Toscana, Siena mais específicamente; nos cliffs de Southerndown em Gales; nos Castelos de Edinburgo; ao som dos acordes dos órgãos de Cambridge; ou simplesmente da minha janela, de onde eu tinha uma vista deslumbrante, com direito à relva (Whitman), daffodils (Wordsworth) e uma lua cheia parecida com a do Cabo Branco, e que mesmo longe, me trazia o cheiro da maresia do Bessa, e minimizava a saudade de casa.

Amar: Amei cada segundo dessa experiência de tanta dor e delícia de ser. Amei ser a única família no casamento da minha irmã Teca, onde fiz discurso e exclamei: E viva os noivos!. Amei sair a esmo pelos metrôs de Londres, ou perambular pelas ruas de Fulham, ironicamente o mesmo bairro onde morou o dramaturgo inglês, John Osborne, assunto da minha dissertação (O Silêncio de Alison); amei me descobrir livre, apta, forte, frágil, destemida, inteira e partida, pronta para sair do chão do banheiro. Amei perder o medo. Medo de tudo, mas principalmente de mim mesma. Amei lavar roupa nas lavanderias comunitária do campus, e fazer amizades com estranhos nunca vistos; amei os Wine Bars, os Pubs, os concertos de André Segovia, o show de B.B.King, ou simplesmente catar folhas avermelhadas em Hyde Park. Ou ainda comprar meu casacão second hand em Notting Hill, sem nem ser Julia Roberts. Tive momentos sagrados sim. E profanos também. Amei.

Minha família, amigos, nunca entenderam minha coragem, não sei ao certo se essa é a melhor palavra… O substantivo não era coragem, era a tal visão do chão do banheiro de que falou Gilbert. Era minha necessidade de autoconhecimento para alçar outros vôos. Ou simplesmente vôo nenhum. Era a urgência de romper com uma situação da vida, e que em terra firme eu não tinha passos, nem força, nem nada. Era preciso voar, ou melhor, dar o mergulho profundo do Cisne Negro, Branco, e de todas as cores de Tchaikovsky, mas com destino à vida e à transformação.

Hoje passados exatamente 24 anos, sei que deixei seqüelas em quem ficou e em mim mesma. Mas tenho a plena certeza de que naquele momento não tinha outro caminho. E nem queria outra possibilidade. A vida me deu a chance de escolher. E eu escolhi. E sou feliz de ter tido a força de Comer, Rezar e Amar, o Rosário a que me foi destinado.

(Obrigada a Lucas meu filho, Fred Pitanga, seu pai, Teca & Anthony, minha irmã e cunhado, Bebé e Claude (outras irmãs), minha mãe, a secretária Nailde, e todos aqueles que, direta ou indiretamente, me deram suporte para naquele momento, sair do chão do banheiro.)

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa, 31 de janeiro , 2011



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