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CONCEIÇÃO: Vae Solis! Que o Destino é Teu!


01/06/2010



 (Este texto é parte de minha Apresentação do Seminário Adaptações Literárias para o Cinema Nacional, Realizado no Sesc, de 25-31 maio,2010.)

Não te enganes.
A vida vai tratar-te mal. Portanto, se quiseres viver tua vida,
Vai, e toma-a.
(Lou Andreas Salomé)

Fui convidada para apresentar uma palestra sobre O Quinze, de Raquel de Queiróz, no evento acima citado. A princípio fiquei relutante, pois não conhecia o trabalho de Raquel de Queiroz, nem O Quinze, vergonhosamente. Fiquei temerosa, mas me veio na cabeça que essa seria uma ótima oportunidade para corrigir esse erro. Depois, tive o privilégio de assistir ao II Seminário Mulher e Literatura, em Natal (1989), onde ela era a grande homenageada.
E eis que lá estava a ler o volume da sua mais famosa obra, autografada pela própria autora, com um exemplar de Vitória Lima, também havia apresentado trabalho sobre o teatro de Raquel.Ter a sua letra de próprio punho, o seu nome, foi como se tivesse com Raquel de Queiroz aqui, juntinho de mim, fazendo parte também da minha leitura.
Li o livro de uma sentada só. Ou duas. Como sugeriu Edgar Allan Poe com sua teoria do conto. Mergulhei no universo do sertão, da seca, daquela linguagem tão forte e tão única do homem do interior do Ceará, minha terra natal, embora criada sempre aqui, que também tem Sertão , seca, e retirante. Enfim, um nordeste, com suas diferenças e peculiaridades, mas uma só região.
E me perguntava: Como que uma jovem de apenas 19 anos, lá nos confins do Quixadá, conseguiu tanto , fazendo algo ainda tão masculino como escrever, sobre tema igualmente dos homens: O Sertão e a Seca. E tão feminista, diga-se de passagem. Que até os críticos da época reconheciam, como fala Augusto Frederico Schmidt, na Introdução da edição comemorativa dos 60 anos de O Quinze: “Nada há no livro de D. Rachel de Queiroz eu lembre, nem de longe, o pernosticismo, a futilidade, a falsidade da nossa literatura feminina. É o livro de uma criatura simples, grave e forte, para quem a vida existe.” Importante salientar o termo tão pejorativo “falsidade da nossa literatura feminina”, opinião essa desconstruída anos depois pelas teóricas, professoras e pesquisadoras brasileiras ou não.
Até o grande romancista Graciliano Ramos retrucou, como cita Ivan Bechara: “Fez estragos maiores do que o romance de José Américo, por ser livro de mulher e, o que na verdade causava assombro, de mulher nova. Seria realmente de mulher? Lido o volume, visto o retrato no jornal, balancei a cabeça: – Não há ninguém com esse nome. É pilhéria. Uma garota assim fazer romance! Deve ser pseudônimo de sujeito barbado.” Nessas palavras, claramente a crença de que mulher não poderia escrever , nem teria sobre o que escrever como tão bem a escritora Inglesa Virginia Woolf relatou no seu clássico Um Teto Todo Seu: “A indiferença do mundo que Keats e Flaubert e outros homens geniais acharam tão difícil de suportar não foi, no caso da mulher, indiferença, mas hostilidade. O mundo não disse para ela como disse para eles, ´Escreva – se assim você o escolheu – para mim não faz diferença´. Para ela, o mundo disse com escárnio, ´Escrever? O que há de valor no que você escreve?”
Particularmente me emocionei com a linguagem dos homens/mulheres do sertão. Embora do litoral, a força do nordeste se alastra aos mares seja através das revistas, dos livros ou filmes. Pude me reconhecer nas palavras de Queiróz, na seca, que felizmente nunca vivi tal realidade, mas pequenos vislumbres da vida do sertão, quando das minhas férias em Pilar ou Alagoa Grande, regiões do brejo, mas que se fazia realidade tão dispare da minha casa em Tambaú. Ao me deparar com os homens, mulheres e crianças daqueles lugares; a simplicidade, a matutice, uma certa inocência perdida, o cheiro do mato, o horizonte , o silêncio, e o cheiro de poeira dos cascos dos cavalos, ou do cocô das vacas, consciente ou inconscientemente estavam acrescentando à minha memória, traços de um nordeste que transcendia o cheiro de maresia.
Fiz o caminho tradicional. Li o livro, e com ele mergulhei nas agruras da seca de 1915. Construí o meu próprio sertão; vi Conceição de pertinho. Sofri, passei fome, lambi os beiços de nojo com as tripas mal lavadas de Senhora Cordulina (que nome!) tão estranho, forte e abnegado tal qual sua Dona; cheguei a engulhar… Urubú, homem, podridão, carniça, tudo igual. Contorci-me com as dores de Josias; afaguei o tadinho de Duquinho, e identifiquei-me com Conceição e seu olhar de desconfiança frente ao casamento e as escolhas femininas já naquela época tão longínqua. Isadora Ducan, a famosa dama da dança dos pés descalços, já dizia: Qualquer mulher inteligente que leia um contrato matrimonial, e mesmo assim siga em frente, merece todas as conseqüências.” Enfim construí meu próprio texto preenchendo lacunas tanto no meu texto literário quanto no fílmico.
Mas o tema por mim focado, foi realmente as mulheres. As personagens. Uma escritora tão jovem e já naquela época, além de conseguir o que a crítica já incansavelmente destacou, na sua originalidade ao falar de tema tão pungente como a seca, foi a forma tão precursora e avançada nas questões ditas das mulheres; e mulheres no plural.
As mulheres de O Quinze, são todas representantes da crítica que sua autora fazia à sociedade vigente e seus costumes. Conceição, Cordulina, Mocinha, Lurdinha, D. Inácia, D. Idalina, Dona Maroca, Zefinha, Chiquinha Boa, todas com nomes diminutivos na sua maioria, e cada uma atuando como a voz das mulheres dos lugares de onde falavam, fossem a Sra. da Fazenda, fosse a que servia café na estação, ou a retirante de olhos secos e estupefados diante da morte.
Mãe Nácia (uma força através da atriz Maria Fernanda), A Senhora de Fazenda, está sempre a rezar pedindo chuva; ou a fazer renda de bilro. O seu estado é o de súplica, seja pelo tempo , seja para Conceição deixar de lado os livros. Embora afetuosa e solidária à neta Conceição, estava sempre sujeita, e, em defesa às regras/convenções sociais.
Cordulina, a mulher de Chico Bento, era uma típica mulher da terra: “ouvia, e abria o coração àquela esperança; mas correndo os olhos pelas paredes de taipa, pelo canto onde na redinha remendada…”; e embora com a vida tão junto ao chão batido, tinha medo de se arvorar no mundo, mesmo sabendo que ficar não era propriamente sobreviver.Cordulina baixava a cabeça, frente ao destemido marido enquanto ele desandava a falar . Chico tinha a palavra, a direção, o comando, o destino (O Amazonas, O Acre, O Norte ) para depois São Paulo. Cordulina, tinha a fé, a crença, os pesadelos com a cobra, chorava e tinha medo. Tinha os dois pés enfincados no chão.
Cordulina tinha uma irmã: Mocinha. Outro personagem feminino interessante. Não agüentou a sina de retirante e empancou em Castro, para trabalhar como empregada doméstica. Um único destino possível. Trabalhou na casa de Sinhá Eugênia, que a oprimia e a escurraçava, atribuindo-lhe o título de sorridente demais para os homens. Uma personagem presa à estação de trem. Lugar onde existe sempre a possibilidade de partidas. A estação, esse entrelugar; esse lugar de intersecções e outras possibilidades, também para as mulheres.
Mariinha Garcia, moça bonita, de família rica, moradora de Quixadá, com auxílio de Lourdinha e Alice, faz tudo para conquistar Vicente, mas as tentativas foram inúteis, mesmo Vicente olhando para suas pernas.Embora Mariinha fosse mais adequada para acompanhar o vaqueiro, esse encontro não se dá, pois o coração de Vicente, está ocupado com aquela, que mesmo estando transitando por mares por ele nunca navegados, preenche suas noites de insônia no alpendre da fazenda.
E por fim Conceição. Uma personagem além do seu tempo, poderíamos dizer que uma mulher feminista. Se destaca desde o início com o seu olhar pé no chão, desde à vinda da chuva, ao seu destino de mulher. Conceição tem anseios. Gosta de ler, e a leitura para ela é um meio de localização e de se inserir no mundo.
Em O Quinze, Raquel de Queiroz faz uma dura crítica ao destino das mulheres, tendo somente o casamento como escapatória. Às mulheres de Jane Austen, lá no século 19, perseguiam o casamento, e ela ironicamente fazia sua crítica sorrateira. As mulheres dependiam do casamento como forma de sobrevivência. Mas em Quixadá, no início do século XX, talvez essa sobrevivência ainda perdurasse, mas já haviam outras profissões às mulheres, embora que com muitas restrições, como a própria avó de Conceição implicava. Tais profissões incluía a normalista, a professora, e a cuidadora. Conceição cuidava dos pobres e desvalidos com a seca. Cuidava de Chico Bento, de Duquinha e da sua avó. Não comia, chegava em casa atrasada, consumira o ordenado em alimentos e purgantes para os doentinhos do Campo, e explicava : “Mãe Nácia, eu digo como a heroína de um romance que li outro dia: Não sei amar com metade do coração” E a avó retrucava: “…Pois vá-se guiando por heroína de romance, e depois acabe tísica….”
Como resultado dessa sua vida profissional, Conceição era vista pela avó, como uma candidata à Solteirona, apesar dos seus vinte e dois anos; mas mesmo assim, não falava em casar. As suas poucas tentativas de namoro tinham-se ido embora com os dezoito anos e o tempo de normalista; dizia alegremente que nascera solteirona. Ouvindo isso, a avó encolhia os ombros e sentenciava que mulher que não casa é um aleijão. Não pude deixar de lembrar da tia solteirona do personagem do filme Alice no país das maravilhas. Personagem que assim como Conceição, também não queria casar e questiona a presença do sapo? Príncipe?. Estaria com razão a avó? Seria Conceição realmente uma candidata à solteirice? Porque de fato, Conceição talvez tivesse umas idéias; escrevia um livro sobre pedagogia, rabiscara dois sonetos,…chegara até a se arriscar em leituras socialistas, e justamente dessas piores das tais idéias, estranhas e absurdas, sua avó não se conformava. Aliar casamento, maternidade e criação artística eis um desafio das mulheres até os tempos de hoje. (Cc. Filmes: Sylvia, As Horas, Foi Apenas um Sonho, Ao Entardecer).
Tais idéias estranhas e cada vez mais distantes dos ditames do casamento, afastavam Conceição também da maternidade. Mas aí novamente esse personagem também rompe com a forma tradicional da maternidade. Se não exerce essa função parindo filhos de um vaqueiro tão ignóbil para seu encontro amoroso, Conceição encontrará esse amor incondicional através de Duquinha, o seu afilhado, adotado quando da migração da família de Chico Bento. Conceição se desvelava em exageros de maternidade, o que fazia Mãe Nácia não perder as esperanças da neta ainda encontrar seu caminho de mãe: “Ali menina! Quando acaba, você diz que não é boa para casar!…”
Com sua crítica ao amor romântico, Conceição toma para si, esse lugar de mulher independente, que tem o seu destino nas mãos e que rompe com a sabedoria dos antigos, que, ironicamente o amigo lhe caçoa: “Olhe…Dona Conceição, já não ouviu dizer: Vae solis! Não crê na sabedoria dos antigos?” E ela, muito dona do seu nariz afirma: “Sei lá, doutor! Os antigos diziam tolices, como todo o mundo – mas até logo….”
E no final, Conceição ao ver Lourdinha, irmã de Vicente, e que ao contrário de si, casa, e cumpre todos os rituais do destino feminino daquela época, e feliz com a filhinha, constata: “Afinal, o verdadeiro destino de toda mulher é acalentar uma criança no peito…e sentia no seu coração o vácuo da maternidade despreenchida…Vae Solis! Bolas! Seria sempre estéril, inútil, só…Seu coração não alimentaria outra vida, sua alma não se prolongaria noutra pequenina alma…Mulher sem filhos, elo partido na cadeia da imortalidade…Ai dos sós….Afina, também posso dizer que criei um filho….”
No filme, a cena completa finda com um “Ora Bolas”, expressão por si prosaica por demais, para finalizar destino tão sério na vida de uma mulher. A impressão que se tem tanto no romance quanto no filme, é que Conceição dá assim de ombros para as armadilhas da vida das mulheres. E que aceita seu destino, o de mulher solteira e sozinha, principalmente por esse destino ser fruto das suas próprias escolhas.

 

 

 

 



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