Artes

Voluntárias criam bonecas para ‘apresentar infância’ a meninas africanas

Projeto 'Bunekas', criado por moradora de Jundiaí (SP), já enviou mais de 500 peças para comunidade em Guiné-Bissau


13/03/2018

Em meio à pobreza, fome, abuso sexual e trabalho infantil, brinquedos estão distantes da realidade das meninas de Gabu, uma comunidade em Guiné-Bissau, na África – região que registrou 5,6 milhões de mortes de crianças menores de cinco anos só em 2016, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU).

Mas, do outro lado do oceano, voluntárias brasileiras se empenham na confecção de bonecas negras enviadas para apresentar às crianças uma infância até então desconhecida pela maioria. As voluntárias, de várias partes do país, compõem o “Projeto Bunekas”, idealizado pela psicóloga Michelle Bordinhon, de Jundiaí (SP).

“A boneca foi pensada em todos os detalhes para falar com o coração das meninas. É uma identificação de modo que as meninas não apenas brinquem, mas também se vejam nelas. Elas não têm expressão, justamente para que as meninas projetem nas bonecas o que estão sentindo”, detalha a psicóloga.

Desde então, ela organiza oficinas em todo o país para mulheres voluntárias que confeccionam as bonecas de pano negras que são enviadas as meninas carentes de comunidades da África.

Michelle conta que durante o trabalho na África, o marido observou os hábitos e a cultura da população. Os meninos, por exemplo, brincavam de bola com os outros, já as meninas não demonstravam nenhuma atividade em comum, e passavam o tempo trabalhando ou ajudando a cuidar dos irmãos.

“Ele me mandava fotos das crianças e eu via que os meninos estavam brincando, enquanto as meninas não brincavam, sempre pareciam tristes”, conta a psicóloga.

A partir daí, as agulhas e linhas entraram em ação. Com o material fornecido por meio de doações, Michelle começou a desenvolver o projeto itinerante em várias partes do Brasil, em estados como Rio Grande do Norte, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

A boneca criada pela psicóloga carrega diversos significados com o objetivo de despertar nas crianças a identificação pessoal.

Cabelo, vestido e calcinha

O rosto sem expressão é só uma das características da “buneka”. O cabelo, por exemplo, é produzido em feltro, cuja aparência se assemelha à do cabelo natural delas.

Crianças da caomunidade de Gabu, em Guiné-Bissau, recebem bonecas feita por psicóloga (Foto: Arquivo Pessoal)

Crianças da caomunidade de Gabu, em Guiné-Bissau, recebem bonecas feita por psicóloga (Foto: Arquivo Pessoal)

Michelle diz que a maioria das mulheres de Guiné usa peruca com cabelo liso e loiro, por influência do padrão de beleza norte-americano. Por conta disso, elas desenvolvem uma micose contagiosa que pode ser passada, inclusive, pela amamentação.

“O sonho das meninas com 10 anos é ter uma peruca, pois não aceitam o próprio cabelo e querem ter uma peruca como a das mães. Quando as mulheres têm algum recurso financeiro preferem comprar uma peruca ao invés de comida”, diz Michelle.

 Os vestidos das bunekas são feitos com chita, tecido colorido e de fácil acesso para uma comunidade carente como a de Gabu. Os modelos também são enviados em tamanho maior para as meninas usarem.

Elas possuem um turbante de pano, também enviado como o da buneka, para reafirmar a identificação pessoal com o brinquedo. As bunekas são borrifadas com óleo de bergamota, que além de servir como repelente, é usado no tratamento da depressão infantil em crianças que não podem usar medicação.

Brinquedo recebe spray de bergamota que age como repelante e no tratamento da depressão infantil (Foto: Arquivo Pessoal)

Brinquedo recebe spray de bergamota que age como repelante e no tratamento da depressão infantil (Foto: Arquivo Pessoal)

Na comunidade de Gabu as meninas não são culturalmente instruídas a usar calcinha, o que prejudica a higiene e facilita infecções. Mas o costume ainda traz uma consequência muito mais cruel: o de facilitar o abuso sexual das crianças.

Brinquedos são confeccionados no Brasil com ajuda de voluntários (Foto: Arquivo Pessoal)

Brinquedos são confeccionados no Brasil com ajuda de voluntários (Foto: Arquivo Pessoal)

Pensando nisso, Michelle envia a boneca com roupa íntima, além de duas peças para cada menina que receber o brinquedo, para que elas aprendam a usar a calcinha. Ela calcula que mais de 500 bonecas já tenham sido enviadas para o país.
Agência da Saúde das Nações

Somente em Guiné-Bissau, a ONG Agência da Saúde das Nações atendeu cerca de 6 mil pessoas, desde 2010. As equipes, formadas por 10 pessoas a cada missão, são enviadas ao país duas vezes ao ano. Os voluntários formam clínicas itinerantes e fornecem atendimento e medicação gratuita à população.

Agência da Saúde das Nações realiza a entrega dos brinquedos na África (Foto: Arquivo Pessoal)

Agência da Saúde das Nações realiza a entrega dos brinquedos na África (Foto: Arquivo Pessoal)

As crianças recebem tratamento médico e odontológico, além de fazerem exames clínicos, como hemogramas, por exemplo.

Também são realizadas palestras sobre higiene corporal, alimentação saudável e prevenção de saúde bucal, reforçadas com algum tipo de presente para as crianças, como kits de higiene, brinquedos e agora as bonecas.

Brinquedo foi criado para que as meninas vejam identificação pessoal na boneca (Foto: Arquivo Pessoal)

Brinquedo foi criado para que as meninas vejam identificação pessoal na boneca (Foto: Arquivo Pessoal)

Rosângela Verly, presidente da ASN, diz que as bonecas podem resgatar nas crianças a autoestima por meio da brincadeira.
“Ela realiza um lindo trabalho de resgate da infância e valorização das crianças com as ‘bunekas’. São crianças que vivem em um contexto hostil frente à cultura que não as valoriza. Crianças que não conseguem nem sequer olhar nos nossos olhos”, afirma.

Em Sorocaba (SP), a enfermeira Daniela Gomes se dedica há um ano na produção das bonecas e cedeu um espaço de casa para coordenar um grupo de 22 mulheres voluntárias que confeccionam o brinquedo. Pelo Brasil, são diversas oficinas já estabilizadas como pontos fixos de fabricação.

“Tenho orgulho de fazer bem sem olhar a quem, para crianças de tão longe, que não têm afeto, que às vezes são abusadas. Saber o que é o amor é o primeiro passo para melhorar o mundo”, afirma.



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