Geral

O Legado


30/07/2013

“The Legacy” é o título de um conto de Virginia Woolf, que se utiliza da linguagem dos diários para contar a estória de uma mulher, Angela Clandon, que comete suicídio para ir de encontro ao amante, B. M., que também já tinha “tropeçado no meio fio em direção a um carro…”. Angela deixa 15 volumes dos seus diários para o marido, o político. Gilbert Clandon. Diário esse que o mesmo Gilbert não gostava, implicava até, com o ato transgressor da mulher, de ter uma escrita e um momento todo seu.

Claro que essa é uma forma mais que simplista de falar de um conto, inda mais da complexidade da escrita de Woolf. Mas peguei o gancho no título, e na forma dos fragmentos, nas reticências da escrita, do final em aberto, do descobrir algo nas linhas do diário, do mundo secreto de alguém que já se foi. Angela Clandon, deixou broches, pequenos presentes para todos, e para o marido, sua maior ironia, seu maior tesouro, e seu maior enigma, os seus escritos.

Guardando as devidas diferenças, e não mais a falar de ironias ou segredos, foi esse o título que lembrei, durante esse mês de luto pela partida inacreditável de Juca, ao des-arrumar seus escritórios, livros, papéis, documentos e até diários. Sim! Juca escrevia diários por um tempo na sua vida. É verdade que pequenos diários, com reflexões sobre sua vida de adolescente, questionamentos políticos, até amorosos, que…me poupei de ler. Já li nos manuais de psicanálises para iniciantes que, quem escreve diários, inconscientemente quer, que um dia esses diários sejam lidos. Portanto…que seja feita à sua vontade. Assim como foi feita nos filmes: As Pontes de Madison e também em Incêndios. A ler um diário , nós leitores, também passamos por momentos de epifanias, pelo outro e por nós mesmos.

Conheci Juca já cheio dos livros. E dos lápis. Como se fosse um colecionador de livros ambulante, ou um estojo colorido da Faber & Faber. Estava vindo de uma longa temporada em Cuiabá e São Paulo. Não tinha nada, mas uma carroça de livros que viajava com ele, fosse onde fosse. Foi assim quando partiu para Cuiabá, para São Paulo, quando voltou para a casa dos pais, e quando finalmente se mudou para juntar as escovas de dentes comigo. Ah! Como os tempos eram românticos!

No começo, não eram tantos assim. Fez uns caixotes de madeira para facilitar o trânsito e aconchega-los. Tinha muito ciúme desse objeto de seu desejo, e tinha olho grande e gordo para os meus livros também….Vez por outra surrupiava um ou outro….como os de Terry Eagleton, ou George Orwell. E eu os dele também. Alguns.

Agora, me vi, invadindo sua sala de Superintendente do Sebrae para des-arrumar o que ele levou 7 anos para arrumar. Livros de Gestão, Pequena e Médias Empresas, Empreendedorismo, Lei Geral, Feiras, Catálogos de arte, Artesanato, como também objetos de arte, Bento e seus pássaros, e fotos nossas, muitas, sobre o bureau.
Depois , um escritório particular, também na mesma rua do Sebrae. Lugar esse que não mais me passará impunemente. Virei uma mulher do Sebrae! Sem empresa nenhuma…mas uma empreendedora de saudades. Ao chegar no seu escritório, me deu vontade de fazer que nem no filme Fahrenheit 451…..E queimar tudo. Não por raiva ou desprezo, mas por desengano de vida. Como é que você vai embora Juca, e me deixa todo o seu tesouro, toda sua fortuna para que eu possa decidir , escolher, empacotar, despachar, acolher, dar fim, enfim….! Lembrei do comentário de Luciano Mariz no Facebook: “Os piores inimigos dos livros são as traças e as viúvas!!” E entendi o por quê! Não é justo!

E por dias, remexendo, revirando, invadindo, me culpando, rasgando, re-lendo, me maltratando, fui dando cabo ou destino a tudo. Uma faxina na vida do outro! Um percorrer em anos de coleção de textos: fundação do PT, pequenas notas sobre a conjuntura política, Teses para os Encontros do PT, ou da Ong/Osip Iniciativa, do Sebrae, Cantigas de roda de maracatus, Billy Holliday, Paulo Moura, que você gostava de ouvir enquanto namorava os livros.
Encontrei um gavetão cheinho de cartas e cartões de amor. Inda bem que eram meus! Uma coleção e tanto! Não acreditei que escrevi tanto!! Sou realmente uma escrevedoira! Coleções de Revistas, Suplementos, Mais e Mais! e outras tantas que, hoje, até perdem o sentido, de tanto papel amarelado. Na era digital, aquelas montanhas de traças já não significam, a não ser para colecionadores, pesquisas, ou as tais traças…

E revendo seus livros, foi fácil fazer uma peregrinação no seu percurso de estudos e vida política, mas não só. Você era economista de formação; político por paixão e historiador por escolha. Mas gostava de ler tudo que entrelaçasse essas áreas mas também, não só. Encontrei poesia, romances (muitos de Phillip Roth e Ian McIwan – Amor sem Fim!), cinema (Woody Allen E Pasolini), e muitos livros sobre comida. Não de gastronomia, mas de Comida como um aspecto antropológico. Minha irmã Claude revirou os olhinhos de tantas novidades na parte que lhe coube… Murilo, seu irmão estava comigo, e também fez sua maleta com livros avulsos de suas áreas de historia contemporânea, ….Pincei livros emblemáticos, Históricos: Raízes do Brasil, Sérgio Buarque; Eu, de Augusto; ou que me lembrassem você como o último livro que leu: Abundância, O futuro é melhor do que você imagina, de Peter H. Diamandis, e Steven Kotler; livro esse que, ironicamente, você presenteou o seu médico, Dr. Ciro, tão esperançoso nesse futuro imaginado…, ou ainda Subliminar, Como o inconsciente influencia nossas vidas, de Leonard Mlodinow, ou ainda sua última presente, com oferecimento do próprio autor, Mario Vargas Llosa, Sabres & Utopia, quando foi vê-lo e ouvi-lo no evento último, Fronteiras do Conhecimento, em São Paulo.

Estava, ironicamente, alucinado pelos assuntos do cérebro. Você tão cerebral, tão racional, tão iluminista, que anteviu seu destino se interessando pelo pensamento desse seu corpo, já enfermo. Fico a me perguntar se….se….se ….já , inconscientemente tinha tido algum sonho, algum vislumbre da sua doença. Outra novidade dos últimos tempos, eram os livros sobre saúde, Márcio Atalla, e Te Cuida! Tudo sobre corrida, comida, saúde, sono, exercício. Você estava esplendorosamente curtindo o seu lado saúde e atleta de araque!! Magro , bonito, e com uma pele! Para Dra. Carla Gaioso nenhuma botar defeito!

Uma vez, olhando nas minhas estantes, escrevi um texto: Os Livros & as Mulheres, uma coisa meio aleatória, mas que, olhando nas minhas estantes, eu era capaz de, fazer assim um retrato literário de mim mesma. Eu que tão pouco li. Mas você Juca, que nunca encontrei sem ter um livro tijolo na mão…teria que escrever 10 textos para fazer assim o seu percurso dos livros.

Sustentabilidade! Era essa a sua última questão! Junto com o Cérebro, o Sal, o Bacalhau, os Macacos, a Humanidade do século XXI! E toda a era digital, só tinha livro sobre ecologia, novos hábitos, globalização. Fernando Gabeira ficaria com inveja !

Livros de Jornalismo, peguei todos para Daniel, que já trilha os caminhos das notícias. E como lias sobre Política! Norberto Bobbio! Hannah Arendt! E todos os Maquiavéis, Karl Maxs, Maos, etc e tal. Tinhas um fascínio por biografias. A vida de todos da política interessava. O tal do conhecimento lhe fervia o sangue. Os pobres mortais, o mundão cotidiano, nós da vida comum, ah! Esses ficavam para depois. E as eleições!, Lula, Mensalão, Governabilidade. Quanto a esses livros, vou chamar Francisco Linhares e Walter Aguiar para dar uma olhada. Não se aborreça! Não vou ser uma traça traiçoeira. Como estava tudo tão arrumado, fui embalando de acordo com sua arrumação; com títulos e tudo, e se prepare que, vamos dar um bom destino aos seus queridos todos. Já comprei um carimbo com seu nome, bem importante, e logo embaixo – biblioteca particular!- e só quero que, as pessoas tenham acesso a esse acervo tão precioso e querido, que fez parte de uma vida dedicada à essa prática tão milagrosa que é a leitura.

Se guardarei uma imagem de você? Muitas. A dos beijos já falei. A outra, seria a de você lendo. Calmo, tranquilo, e feliz, com seu marca texto verde limão, dourado, laranja, fúcsia, todos os lápis e todas as cores, e a beleza de quem viaja no conhecimento.

Quando da nossa única e última viagem ao exterior, Espanha e Portugal, quando voltamos, Daniel me contou com um ar de galhofa que, lhe perguntou animado: “…e aí pai, gostou do estrangeiro? Como foi ser turista?” E você bem quieto e provinciano?! respondeu: “…gostei muito. Tudo muito bonito e muito bom, Mas prefiro conhecer os lugares e as coisas pelos livros.”

Não preciso dizer mais nada! Só que, guardarei Eduardo Gianetti – Felicidade, numa estante especial. E O Erotismo de George Bataille….e O Olhar….presente meu, para que eu nunca esqueça do seu olhar , nem do seus livros. Nem dos dois!

A Saudade…

Que braço longo
Tem a saudade.
Me alcança
A cada vez que me escondo.

Refugio-me nos livros
Lá está ela entre os conceitos.
Busco a música
E ela me visita nas emoções que surgem.

Que braço longo tem a saudade.
Multiplica-se nos rostos
que me ultrapassam
Se mostra nos detalhes
Do viço, do passo, dos encontros.

Vindo e indo não me rouba,
Portanto, o que mais prezo.
A figura inteira nos meus olhos,
A presença intensa no meu verso.

Que abraço longo tem minha saudade…
(Alfredo Augusto Cruz)

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa , 23 julho, 2013



Os comentários a seguir são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site.