Geral

Melancolia Azul


21/02/2012

 

(Para Claude, irmã querida, pura luz, aniversariante da semana)

Melancolia – Valsa triste que toca dentro da gente de repente (Adriana Falcão)

A reflexão sobre a melancolia remonta à Antiguidade. A questão da bílis negra, dos humores e dos seus componentes (sangue, bile amarela e a pituíta), fazia da melancolia antes que tudo uma questão biológica. Somente na era moderna, ela vai ser compreendida como uma doença da alma.

O termo Melancolia vem do grego Melankholia, é formado pela associação das palavras kholê (bílis) e melas (escuro). Melancolia significa literalmente a bilis negra, uma das muitas substâncias constituintes do corpo humano segundo a medicina antiga, mas que em excesso provocaria uma desordem cujo principal sintoma seria o afundamento nos próprios pensamentos e a perda de interesse pelo mundo exterior. Segundo Aristóteles, uma das principais características dos melancólicos seria a propensão a se deixar levar pela imaginação.

A imagem da melancolia , da antiguidade ao século XXI, é a imagem do olhar perdido, o corpo curvado sob o peso da existência, como na tela de Dürer (1514), Melancolia I. Somente a partir do renascimento é retomada a tradição aristotélica segundo a qual o melancólico é também um homem criativo e genial. Melancolia pode ser uma experiência de interiorização profunda e fértil, um estado afetivo propício a todo ser que tenha como projeto compreender e modificar o mundo.

É com os estudos de Freud, Luto e Melancolia, que a reflexão sobre os estados d´alma se ampliam e se organizam. Freud acrescenta ainda que o estado melancólico é um estado doloroso, de suspensão de interesse pelo mundo externo, de incapacidade para amar, e através do qual também ocorre a inibição para realizar tarefas e depreciação do sentimento de si.

Em um outro livro, O mal estar da civilização, Freud também falou da dificuldade do homem para ser feliz, e nomeou três fontes para nosso sofrimento: o poder superior da natureza, a fragilidade dos nossos próprios corpos e a inadequação das regras frente aos ajustes dos relacionamentos na família, no Estado e na sociedade. E mesmo com todos os avanços do progresso e da tecnologia, ainda se perguntava: “…de que nos vale uma vida longa se ela se revela difícil e estéril em alegrias, e tão cheia de desgraças que só a morte é por nós recebida como uma libertação?”.

Um outro filósofo, Schopenhauer, em Dores do mundo, afirmou que “só a dor é positiva” , e de que “a vida é uma guerra sem tréguas, e morre-se com as armas na mão”. Na visão dolorosa da existência, Schopenhauer, argumentou que a primeira metade da vida se caracteriza por uma “infatigável aspiração de felicidade”, enquanto na segunda, somos dominados por um “sentimento doloroso de receio”.

A filósofa/psicanalista/crítica literária Julia Kristeva, no seu livro Sol Negro – Depressão e Melancolia, retoma da teoria freudiana a idéia da inconsciência do melancólico referente à perda do objeto amado, e, da teoria lacaniana, a idéia de um vazio ontológico e fala sobre uma tristeza profunda resultante de uma “carência congênita”, que ela denomina de Coisa. E acrescenta de como as nossas tragédias de cada dia podem justificar nosso desamparo: “A lista das desgraças que nos oprimem todos os dias é infinita…Tudo isto, bruscamente, me dá uma outra vida. Uma vida impossível de ser vivida, carregada de aflições cotidianas, de lágrimas contidas ou derramadas, de desespero,sem partilha, às vezes abrasador, às vezes incolor e vazio”.

Nas últimas semanas, tive um Carnaval de Cinema! E entre tantos filmes diferenciados como: Separação, Vidas Cruzadas, A Pele que Habito, Cópia Fiel, Os Filhos de João, O Homem que Amava as Mulheres, deixei para o sábado de carnaval, ironicamente, o mais novo filme do diretor dinamarquês, Lars Von Trier, Melancolia, filme indicado à Palma de Ouro de Cannes 2011, mas que se viu prejudicado diante da polêmica com as declarações bombásticas do diretor, sobre Hitler e o Nazismo.

Os filmes de um dos criadores do movimento Dogma 95, já haviam me deixado suspendida em lá menor…: Ondas do Destino, Dançando no Escuro e Dogville, são filmes que nos fazem pensar, e que nos deixam uma sensação de soco no estômago, tanto com os temas, como pelas formas de se contar uma estória, mostrar um problema ou expressar sensações. Em Ondas do Destino, temos o filme literalmente tripartido em cenas, pedaços, em ondas de explosão de uma mulher que não conseguia se expressar sexualmente e quando consegue….; Dançando no Escuro, Björk com seus óculos fundo de garrafa, enfrenta tudo para obter um certo dinheiro, e dançando na sua cegueira, também nos leva à uma escuridão profunda, e Dogville, se utilizando de um espaço teatral plano, descortina um palco também violento sobre tantas coisas. Esse último vi sozinha em casa, muda e sem fôlego, até 2 da manhã, também emaranhada naquele caminhão cheio de maçãs.

Não sei dos interesses do diretor Lars Von Trier sobre o tema, mas a mim interessa a melancolia, tema trabalhado na minha tese de doutorado sobre As Horas e Virginia Woolf, trabalho que serviu de fonte para essas citações do início do texto. Meu interesse é comungado tanto pelo comentário de Charles Feitosa que, no seu artigo “Arte & Melancolia”, fala que: “o ser humano é fundamentalmente melancólico, dominado por uma sensação de vazio interior”, como pela afirmação de Camille Claudel: “Há qualquer coisa de ausente que me atormenta”, essa última sempre à minha espreita. Então o filme de Lars, me contaminou pelo título, pelo tema, e pelas angústias da vida pessoal, banal, e melancólica frente à imensidão do desconhecido.

Melancolia pode ser um planeta, uma irmã Justine, uma outra Claire, um diretor Von Trier, uma sombra, uma caverna, um sol negro, uma cor cinzenta, mas melancolia está em todos nós. O que muda é quando esse estado de ser vem à tona e se mescla à uma outra realidade. E essa realidade sombria é a inadequação, o isolamento, o alheamento, a sintonia diferenciada, uma outra sensibilidade, mesmo frente ao fim do mundo.

O filme, é apresentado por duas partes, as duas irmãs. E também pelos sentimentos duplos complexos que estão sempre a permear esse parentesco: amor e ódio; dificuldades e facilidades; entrosamentos e distâncias; sombras e clarões. Andar a cavalo à galope num caminho no bosque, pode até ser um encontro, mas com suas fissuras intransponíveis.

Kirsten Dunst (Super Homem, O Sorriso de Monalisa, As Virgens Suicidas), é Justine, uma noiva “gorgeous” e glamorosa, que sabe fazer frases – slogans, para à publicidade, mas não sabe ver o texto da sua própria vida. Tudo é um episódio de dilaceramento. Tomar banho de banheira em plena festa de casamento; deitar-se nua na relva, quando o planeta está prestes a explodir; falar com Abraham, seu cavalo, antes de partir o bolo; fazer sexo selvagem no jardim solitário, com um estranho, ao invés de uma noite de núpcias, ou simplesmente sentir um fio de cipó a lhe prender as pernas ao vácuo.

Charlotte Gainsbourg – depois de arrebatar a Palma de Ouro em 2009 por Anticristo, também do mesmo diretor, é Claire, a clara frente à sombria irmã. Clara na objetividade, na dureza, no fazer e acontecer, e principalmente no achar e se iludir que, pode controlar tudo, inclusive os estados d´alma da irmã. Ninguém pode! E quando se dá conta da sua vulnerabilidade, da sua impotência frente à impermanência da vida, explode também de sombras antes tão desconhecidas. O medo, o desespero, a angústia desconcertante de Claire, ultrapassam à desconexão do mundo da sua irmã. Nesse momento de caos, Claire se comunica bem pior com o fim, do que Justine, essa já em estado suspenso diante das coisas e da vida.

A câmera trêmula e cambaleante de Lars Von Trier nos incomoda. Ficamos literalmente também com um olhar trêmulo frente às críticas à família, às convenções, ao lugar comum, e principalmente ao casamento. A eterna personagem do complexo de Estocolmo, Charlotte Rampling, de O Porteiro da Noite, faz a mãe da noiva, e mostra seu desprezo gélido a tudo que diz respeito ao casamento, personificado num marido beberrão, um John Hurt, que de nada nos lembra seu grande sucesso 1984. Em Melancolia, o pai da noiva está rodeado de Betties e de colheres de prata no bolso, o que só mostra toda sua frieza, disfarçada em pilhérias de um palhaço, para com a filha que, cai literalmente nas armadilhas de um festa de casamento, a começar por uma limusine que não cabe nem pertence aos caminhos sinuosos e estreito do bosque.

A apresentação do filme, em still e câmera super lenta, vai aos poucos fazendo um “foreshadowing” dos possíveis desfechos, mesclando silêncios profundos com a música angustiante “Tristão e Isolda”, de Wagner. Cenas belíssimas imprimem à melancolia propriamente dita, em especial a de Justine vestida de noiva, boiando nas águas gelatinosas de um rio parado, nos remetendo à famosa cena de Ophélia, em Hamlet, onde também a loucura, solidão e ausência fazem coro com um desfiar de nomes de flores à beira da morte. A Nona Sinfonia de Beethoven se encarrega de complementar as quebras do silêncio cortante, o terror do choque com o planeta dos sentimentos blues, nos remetendo por vezes a um 2001, de Kubrick, ou a sentimentos de agorafobia, que o cinema de poesia nesse caso, se encarrega de nos arrepiar.

Não tem quem não se identifique com os momentos vivenciados pelas duas irmãs. Seja no pavor, na ansiedade, na depressão, no pânico e em todos os males da civilização trazidos por Freud, ou por qualquer outro mortal. Confesso que o dejá vù me aterrorizou. E tudo isso na vida real é bem mais mortal que no cinema, mas, o cinema tem a capacidade de representar os horrores da vida de forma elaborada, o que aquieta nosso caos, mesmo sem querer imaginar que existe um planeta azul à nossa espreita.

Que a terra é azul, já sabia Gagarin, mas a de Von Trier é cinza!

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa 21 de fevereiro, 2012



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