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‘Fui transformado no alvo’, diz médico sobre a morte da menina Adrielly


08/01/2013

 O médico que faltou ao plantão de Natal no Hospital Salgado Filho, no Méier, Zona Norte do Rio, gerando uma espera de oito horas para que Adrielly dos Santos Vieira, de 10 anos, fosse operada, resolveu falar sobre o caso. Adão Orlando Crespo Gonçalves declarou não se sentir culpado pela morte da menina, atingida na cabeça por uma bala perdida, e disse que transformou-se em alvo. "Sou solidário com a dor dos pais, apesar de tudo que falam de mim", afirmou.

Adão Orlando Crespo confirmou ainda que estava insatisfeito com o que chamou de "sucateamento do hospital " e que queria a demissão.

O médico respondeu por e-mail, na madrugada desta quinta-feira (8), às perguntas do G1. Adão disse que faltou a todos os plantões do mês de dezembro e que comunicou aos susperiores, três dias antes, que faltaria no dia 24.
Crespo responsabilizou o chefe do setor de neurocirurgia da unidade, José Renato Ludolf Paixão, pela falta de neurocirurgião na noite de Natal, afirmando que Ludolf foi alertado mais de uma vez que ele faltaria ao plantão.

Procurado pelo G1, o médico José Renato Ludolf Paixão não foi localizado até às 14h20 para falar sobre o assunto. A mulher dele, que se identificou como Solange, afirmou que ele deveria estar em cirurgia. A equipe de reportagem entrou em contato ainda com a Secretaria municipal de Saúde, mas ainda não obteve resposta.

Leia abaixo a íntegra da entrevista:

Qual foi o motivo da falta ao plantão na noite de Natal? O hospital foi avisado sobre a falta? Quem especificamente?

Eu já vinha faltando todo o mês de dezembro. Eu não tinha mais condições psicológicas de continuar a trabalhar no Salgado Filho. A minha insatisfação, na verdade, era com o sucateamento do hospital e, principalmente, a falta do número mínimo de neurocirurgiões, levando a que eu fosse escalado para praticar cirurgias sem auxiliar capacitado. Em setembro, avisei ao Dr. José Renato Ludolf Paixão, chefe do serviço de neurocirurgia do Hospital Salgado Filho, que ele deveria conseguir um substituto porque eu não queria mais continuar. Chegou novembro e vi que nada aconteceu. Com a falta de perspectiva de resolução do problema e considerando inadmissível a realização de neurocirurgias com apenas um profissional, notifiquei a minha chefia imediata que deixaria de comparecer aos plantões a partir de dezembro de 2012. Apesar de ser fato notório que eu não havia comparecido a nenhum plantão no mês de dezembro e de já ter comunicado ao meu chefe imediato a minha posição, eu, sabedor das dificuldades que tradicionalmente ocorrem nos plantões de final de ano – volume de atendimento, aumento dos casos de trauma, muitos relacionados ao aumento de consumo de bebidas alcoólicas -, no dia 21 de dezembro, às 16h28, contatei mais uma vez através do meu telefone celular pessoal o meu superior imediato e chefe do serviço de neurocirurgia, Dr. José Renato Ludolf Paixão, e comuniquei categoricamente que não compareceria ao plantão. Ele então teria mais de 72 horas, como responsável técnico pelo serviço de neurocirurgia, para tomar as medidas que achasse pertinentes, ou notificar a chefia do plantão e direção do hospital de que não haveria neurocirurgião de plantão. Obrigação inerente ao cargo que ocupa.

O que aconteceu exatamente naquela noite?
Eu só tomei conhecimento no dia seguinte. Eu não tinha conhecimento do que estava acontecendo naquela noite. Eu nem sabia que tinha sido colocado na escala de plantão.

Em depoimento à polícia, o senhor disse que já vinha faltando aos plantões por não concordar com a escala. Qual era a discordância?
Em primeiro lugar, gostaria de esclarecer que a minha insatisfação não era com as escalas de plantões do HMSF, mas sim com o fato de sempre me colocarem como o único plantonista num hospital com péssimas condições de trabalho. Fui surpreendido com a inclusão do meu nome na escala de plantão da noite do dia 24 de dezembro, quando havia notificado meu chefe imediato categoricamente de que não compareceria ao plantão três dias antes. Eu só soube que estava escalado no dia seguinte do ocorrido.

A direção da unidade vinha sendo comunicada sobre essas faltas recorrentes?
Suponho que sim. A comunicação não é feita por mim, mas pela chefia imediata, que foi informada com total antecedência.

O senhor recebeu algum tipo de advertência em razão das faltas?
Nunca recebi qualquer tipo de advertência.

Se o senhor já estava insatisfeito há algum tempo, por que não pediu exoneração/desligamento, já que a prefeitura afirma que não recebeu nenhum pedido de "demissão"?
O processo de demissão é burocrático e extremamente lento e eu teria que permanecer trabalhando nesse período, até a publicação no Diário Oficial. Isso pode levar de três a seis meses. Eu queria me desligar rápido. Não queria continuar a trabalhar naquele esquema. É desumano.

Qual foi a reação do senhor ao saber do caso da menina Adrielly através da imprensa?
Eu soube na manhã de 25 de dezembro. Um colega de plantão me telefonou e contou o acontecido. Foi quando constatei que, apesar de todas as minhas medidas efetuadas, de que faltaria ao plantão como vinha fazendo desde o início de dezembro, eu havia sido escalado à revelia como o único neurocirurgião de plantão. De imediato, houve exposição pessoal maciça, acusações de omissão de socorro para uma paciente que estava em um hospital no qual não me encontrava e de que havia avisado aos meus superiores que não me encontraria e de que não tinha menor conhecimento da situação ou sido avisado da mesma por telefone. Todas as consequências foram de imediato imputadas a mim e não a um problema administrativo de gerenciamento de plantão.

Sentiu-se responsabilizado ou culpado de alguma forma pela morte ou não? De quem seria a responsabilidade neste caso, na sua opinião?
Não há como não ficar triste quando uma criança perde a vida desta forma violenta. Não me sinto culpado pelo que aconteceu a ela, sou solidário com a dor dos pais, apesar de tudo que falam de mim. São pessoas humildes, estão sofrendo, vivem em uma área de risco e o fato de não fazerem nenhuma referência ao disparo que a matou provavelmente reflete o temor que têm por sua própria segurança. Uma das formas mais comuns que as pessoas utilizam para diminuir a dor e o sofrimento é direcionar indignação e raiva a alguém. Na impossibilidade de atingir o autor do disparo, eu fui transformado no alvo. Tenho maturidade e experiência suficientes para entender isso. Espero francamente que, com o tempo, um melhor esclarecimento dos fatos e entendimento, eles mudem esse sentimento. Acho indigno quando eles são acusados de terem deixado a criança ir à rua e serem irresponsáveis quanto à segurança da mesma. Que estado é esse em que uma criança feliz com o seu presente de Natal não pode sair à rua onde mora e brincar sem levar um tiro na cabeça?

Qual foi a versão apresentada pelo senhor à polícia?
Declarei à polícia o que de fato ocorreu: estava demissionário e, mesmo assim, preocupado com os plantão do dia 24/12, e que informei ao meu chefe imediato na tarde do dia 21 que não iria. Quanto à acusação de omissão de socorro, eu particularmente não consigo entender como isso se aplicaria a mim. Eu não estava no hospital, não sabia do que estava ocorrendo e nunca fui comunicado ou chamado para atender a menor.

Como pretende se defender da suspeita de omissão de socorro?
Eu sou médico, não advogado. No meu raciocínio de médico, para ser omisso eu precisaria saber que a menina havia sido baleada e que eu tivesse condições de ajudá-la. Talvez um criminalista pudesse definir melhor o que é omissão de socorro. Sinceramente, não entendo como posso ser culpado por um problema que eu desconhecia. Ninguém me telefonou, ninguém pediu minha ajuda ou colaboração. Se tivessem me ligado, teria ido imediatamente para o hospital.

De que forma o caso está repercutindo na sua vida pessoal e profissional?
Apesar de toda a exposição que sofri, eu fui surpreendido com uma enorme quantidade de pacientes e colegas que me ligaram, enviaram mensagens de apoio e conforto, algumas pessoas com as quais não tinha contato por 10, 15 anos. Por algum tempo, vou ter que reduzir meu tempo de trabalho para que eu me dedique à minha defesa. A diferença é que todo o trabalho vai ser feito como eu considero correto e seguro.

Desesperada, a família da menina Adrielly culpou o médico pela morte da criança. O que o senhor diria aos pais da menina?
Na verdade, eu não sou culpado pela morte da filha deles. A culpa foi do tiro que ela levou, de quem atirou. Sou solidário com a dor dos pais. Naturalmente, o poder público não supriu o melhor tratamento médico possível, existem vários fatos que não foram esclarecidos quanto à não remoção da menor ou contato ao chefe de serviço, mas é evidente que a demora de atendimento ocorreu. Embora a menor provavelmente não se beneficiasse de um tratamento mais adequado, devido à gravidade de suas lesões, a carga de sofrimento e revolta da família seria muito menor com um atendimento correto.



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