Geral

Eu Vi os Homens Trabalhando


15/11/2011

 Eu vi os homens trabalhando
ao sol do meio-dia
eu vi os homens trabalhando….
altos magros, louros, morenos
gordos, pardos, baixos, pequenos
o suor escorrendo pelos rostos, pernas, ombros, torsos
…uma piada, uma risada, um impropério, um assovio…

Há aproximadamente um ano, começou uma obra de um edifício dando os beiços com o meu quintal. E lá se foi a minha paz há tantos anos, mais especificamente 27, de morada com as rãs, muriçocas, e cajus conta.

O prédio já vai alto. E todo o trabalho parece ser bem dentro do meu quarto, ao pé dos meus ouvidos. Mas na vida, a gente se acostuma, mas não deveria…já disse lindamente Marina Colasanti em crônica/poema com esse título. E durante todo esse tempo, tenho cantarolado Construção, Pedro Pedreiro, e acompanhado essa lida de tijolo sobre tijolo. O mais irônico é que, a cada acidente de trabalho que leio no jornal, fico aflita pensando nos meus trabalhadores. Sim, porque à essas alturas, já os sinto de casa.

Todo dia, impreterivelmente, às 7, o burburinho começa. E da minha cama, do meu sono, e ainda dos sonhos, fico a ouvir todos os barulhos. Teve o tempo da fundição, um rém rém feito motor de dentista; teve rosnar que nem o de Boris…; teve barulhos finos e afiados e cortantes; bomba d´água; solavancos; sopapos; agudos; graves; surdos – tudo mais que orquestrado; e som tagarelados por aqueles que sabem cimentar, fundir, cavar, e construir.

Mas, o que mas me encanta é o barulho do assobio e das conversas. E o povo ainda diz que homem não conversa. Também achava. Mas depois da construção nos fundos do meu quintal, passo a ver a tagarelice masculina com outros olhos. Esse homens, do alto dos seus andaimes, falam viu? Gargalham, fazem joça, brincam, cantarolam, soltam piada, zonam com os colegas, e acho, digo acho, que bebem uma pinga de quando em vez. Quem sabe tamanha alegria no sol forte, tenha origem na branquinha. Ou tudo não passa de folclore, ou até preconceito.

Certa vez, aliás, algumas vezes, fiz reformas aqui em casa, todas descritas em crônicas. E tinha um ajudante de pedreiro que gostava de tomar uma. E ele tomava algumas durante o seu dia de labuta. Depois soube que era danado na bebida, que brigava com mulher, até que um dia chegou todo inchado, todo alérgico, os pés em carne viva dançando naquelas botas galochas sem conforto e sem motivação. O corpo pedindo socorro. Fiz meu papel de plantão médica! Conversei sem querer dar lição de moral, falei dos malefícios do álcool, da diabetes, de isso e aquilo, do filho que precisava assistir, da mulher que deveria cuidar, das contas a pagar, mas principalmente da sua saúde. O nome dele não era Pereirinha…, mas era assim no diminutivo, tamanha sua fragilidade. A obra acabou, e perdi de vista esse Pereirinha particular, embora sempre perguntasse por ele a outros trabalhadores que ficaram fregueses. Até que um dia, recebi a triste notícia. Pereirinha tinha sido assassinado. Ao sair bêbado do bar, tinha sido espancado até a morte. Como esses casos que a gente vê na TV, mas no caso dele, um causo a mais, que não saiu no jornal. Nem nas estatísticas ele foi parar. Um rapaz jovem, trabalhador, com um talento de pedreiro requisitado, mas que aquela bebida branca o iludiu na hora da fome, do cansaço, até a morte. Morreu na contramão, sem ao menos atrapalhar o tráfego!

Fiquei a pensar em tantos outros homens que trabalham de sol a chuva com esse pó cinzento que nem barato dá, mas que mata ou de doenças respiratórias, ou de doenças avessas e transversais. Talvez por isso, esses homens também cantam. Cantarolam o dia. Fico por vezes enfadada do mormaço, do calor, aqui no meu bem bom do meu quarto, com ar condicionado, lendo jornal, cochilando, até nem mais preciso de despertador. Enquanto esses homens carregam pedras literalmente. Por meio da Dengue (as águas paradas infestadas enviaram uns mosquitinhos aqui em casa, motivo de termos contraído o estar dengosos).

Pensei no poema de Vitória Lima, cujo título tomo emprestado para essa crônica. Pensei nos mineiros enterrados e depois salvos, nos outros que não tiveram volta; e toda vez que começo a ficar aflita porque não durmo, não tenho sossego, e não gosto desse gigante que de pedra em pedra, me cobre a vista no horizonte, logo logo passa quando escuto a camaradagem masculina por entre os escombros da vida; as risadagens de quem só tem aquela possibilidade de sobreviver; e da roda viva desses homens por entre é pau, é pedra, é o vento ventando.

E nesse Dia da República, minha homenagem aos homens trabalhadores, mais especialmente aos pedreiros, mestres de obra, ajudantes, que no sol forte de cada dia, fazem a nossa morada. E que a tagarelice masculina consiga ultrapassar os muros do trabalho, e quem sabe cochichar aqui nos meus ouvidos…

Eu vi os homens trabalhando
…no campo, nas fábricas, nas ruas, estradas, nas feiras,
oficinas
eu vi os homens trabalhando

(poema de Vitória Lima – Eu vi os Homens Trabalhando, no seu livro Anos Bissextos)

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa 15 de novembro de 2011



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