Geral

Escrevendo Cartas


12/12/2012

 Eu não costuro para fora, costuro para dentro
(Clarice Lispector – citada por José Castello)

Escrevia cartas no século passado. Muitas. Desde pequena. Mas foi na saudade grande que desenvolvi essa arte epistolar. Adolescente, fui fazer intercâmbio do outro lado do mundo. Num tempo que viajar aos Estados Unidos era igual à ir à um planeta extraterrestre. Comunicação Zero! E só, e somente as cartas, me davam alento no coração. Passava horas imersa nessa conversa com pautas e letrinhas. Inclusive mudei minha letra para bem miudinha. Queria fazer os assuntos renderem. E caber mais e mais conversas em cartas intermináveis que transcendiam às notícias. O “olá como vai, eu vou indo e você tudo bem?” Eu dizia em duas páginas. Ah! Mais o barato estava no depois. Passeios na imaginação, divagações, sonhos, perambulações pelo in-consciente. E essas eram as páginas de que mais gostava. Facilmente eu atingia a casa das 20 páginas e ficava me perguntando que tantos assuntos eram esses….Não eram assuntos ! E quando re-lia (aprendi também a não fazer mais isso), me achava mentirosa, pois pouco daquilo condizia com a realidade. Mas e daí? Somente anos mais tarde, fui aprendendo sobre um tal de Eu Lírico, esse Eu da poesia, que não necessariamente sou Eu! E também fui me inteirando sobre um tão de Real. Que nem tanto é a realidade, nem menos a ficção. Um entre-lugar que faz parte da Literatura e que Sartre tratou de me explicar um pouco em um texto importante.

Ah! Que maravilha quando me descobri uma não-mentirosa. Pois tudo o que eu escrevia era verdade verdadeira! Mas nem sempre acontecia como eu narrava. Passei a vida me ouvindo chamar de exagerada, que é uma forma amena de mentirosa. Somente depois de Cazuza, baixei o facho e me aceitei assim. “Deixe de ser radical, menina!” Quando eu , veementemente defendia minhas mentiras! E quando se é des-mentido em público sobre essas mesmas fronteiras? Que vergonha! Que desalento! E qual a graça de contar uma estória sem enfeites, sem ultrapassar os ditames da realidade? O que dizer da nossa memória traiçoeira? Que nos inventa a toda hora que lembramos direitinho do que queremos. Qual nada! Inventamos o passado sempre. Re-inventamos tudo, para ficarmos em paz, pelo menos com a linha da vida.

E são tantos os termos que vão surgindo , para dar conta de tanta mentira! O jornal Valor Econômico, tem um Caderno de Cultura às sextas, que eu adoro. Pérolas sobre o mundo das artes, entrevistas, resenhas e pequenos textos de crítica . José Castello é dos meus preferidos. No seu artigo “Na fronteira da Memória” ele argumenta: “ Autoficção, palavra surgida na Europa para designar romances fronteiriços, que vacilam entre a memória e a fantasia. Termo que designa narrativas que trabalham com recordações verdadeiras, envolvidas , porém, no manto deformadora da invenção… Autoficção = uma espécie de recordação imaginária de fatos (vidas) realmente existentes, mas perdidos para sempre nos vãos da lembrança….Abismos, despenhadeiros, desertos compõem a paisagem longínqua que separa a memória da imaginação….A pergunta porém retonra: não será todo relato – “rela” ou “ficcional” – um jogo com a ideia da verdade?” (Valor, 20-22 abril, 2012).

Nesse mesmo Suplemento, a escritora Tatiana Salem Levy, no seu artigo: “Entre a realidade e a ficção”, (Valor 20-22/04,2012) pergunta: “O que é narrado aconteceu na realidade?” E fala das dificuldades dessa linha sempre em discussão: “De um lado, existe uma fome de veracidade por parte dos leitores, ansiosos em saber se há equivalência entre fato e ficção. E, de outro, existe u=na crítica, uma enorme resistência em falar da vida, como se a literatura não tivesse nada a ver com ela.” E ela, para falar do Real, aborda as ideias de Roland Barthes – A morte do Autor, enquanto reação à crítica literária da época, que buscava explicação para a obra na vida do autor, traçando paralelos redutores entre os acontecimentos narrados e os fatos vividos.” E Tatiana re-toma o tema para os dias de hoje afirmando:” Nem vivo , nem morto , o autor é uma espécie de zumbi. Insone está sempre em estado de vigília…o escritor se encontra ao mesmo tempo dentro e fora dos acontecimentos. É um observador inquieto, predisposto a assistir à própria vida e transformá-la depois.” E vai além: “ Não se pode portanto, dizer que o universo do livro não diga respeito ao autor. Se Proust tivesse tido outra vida, outros seriam os seus livros…” E eu acrescento: Se Joyce não fosse Irlandês, a frustração e a paralisia e a Epifania, não fariam parte dos seus Dublinenses. E Virginia Woolf? Se não tivesse ficado órfã de mãe aos 13 anos , jamais teria escrito Rumo ao Farol, e re-formulado toda a visão e sentimento de uma saudade que a fez adoecer a vida inteira.

Tatiana termina seu artigo citando Nietzsche: “Não há fatos, só interpretações”! E se pergunta: “Literatura e realidade se confundem ou não? Os acontecimentos importam? O que é mais verdadeiro: O que se escreve ou o que se vive? E responde: Questões como essas fazem parte do próprio fazer literário e não fornecem respostas prontas e óbvias. Escrever é, também, perseguir essas indefinições….Por mais que o escritor se transforme em seres estranhos, que se desloque por lugares e épocas desconhecidos, o texto que ele produz passa sempre por ele, pelo seu campo de conhecimento e ainda mais, pelo seu corpo. Num pequeno livro chamado Escrever, afirma Marguerite Duras: “ Sem sangue, o autor não reconhece mais o seu texto” O que é o mesmo que dizer que se ele não estiver ali, presente, inteiro, a literatura não se realiza….As vezes, para falarmos dos outros, é preciso chegarmos muito próximos de nós mesmos.”

E conclui: “Entre dois elementos – a realidade e a ficção – existe um terceiro: O Real. …pequenos clarões que surgem de repente, e, sem explicação, suspendem o tempo e fazem as coisas ganharem sentido. …A literatura nesse sentido, é uma tentativa de chegar perto não dos fatos, daquilo que já sucedeu, mas do real, da vida em seu fulgor; em suma, de tudo aquilo que, por ser grande demais, incompreensível demais, vela alguém a escrever. Uma experiência quase mística, que nada tem a ver com religião nem com deus, mas nos coloca diante do inexplicável e nos faz experimentar o susto de estar vivo: é isto, a literatura”

E lá se foram minhas cartas….verdadeiras ou não, que nunca tiveram a pretensão de serem romances, mas lendo esses artigos, viajei nas memórias, na minha interpretação particular dos sonhos, nos papéis amarelados dos pacotes das minhas cartas, nas letras borradas e imaginadas, sim! E nas outras modificações da minha caligrafia, que para dar conta de tanto acontecimento e de tantas interpretações, deixou de ser miúda, mas ficou comprida e levemente inclinada para o lado, como se quisesse re-clinar, para depois levantar voos e cruzar os tempos e os oceanos. Quem sabe para ganhar tempo. O tempo da distância , o tempo da saudade, o tempo das escrevinhações.

Hoje, com o tempo virtual e o tempo da velocidade, já (quase) não escrevo mais cartas. De amor então??? Todas ridículas, como dizia Fernando Pessoa. Estão aí os sites, blogs, faces, twitters, etc pois o desejo de narrar, mesmo que seja em cento e poucos caracteres, continua, mentindo sim! Mas quem há de negar que essa lhe é superior??? E de conto em conto, acrescentando mais um ponto, seguimos contando, cantando, e mentindo vida afora. É verdade!

Até hoje sonho com o Carteiro gritando: Corrreeeioooo!

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa 12/12/2012



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