Educação

Ensino Domiciliar: uma violação aos direitos da criança, por Éder Dantas

Em artigo, o professor Éder Dantas, da UFPB, debate a tramitação do Projeto de Lei 3.262/2019, que prevê a implantação da educação domiciliar (homeschooling) no Brasil.


09/06/2021



Um projeto de lei tramita na Câmara dos Deputados e, se for aprovado, poderá representar um grande retrocesso para a educação brasileira e, especialmente, ao direito das crianças e jovens à educação:  o Projeto de Lei 3.262/2019, de autoria do deputado Lincoln Portela (PL-MG), que altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, o Código Penal, para incluir o parágrafo único no seu art. 246, no intuito de prever que a educação domiciliar (homeschooling) não configure crime de abandono intelectual. O PL visa descriminalizar a ausência de matrícula escolar de crianças e adolescentes de 4 a 17 anos para famílias que adotarem a educação domiciliar.

Pelo projeto, a educação básica passaria a ser oferecida também em casa, sob a responsabilidade dos pais ou responsáveis, excluindo crianças e adolescentes do ensino e da escola regular e afastando-os do convívio com professores e outros especialistas e com outros alunos ou alunas da mesma faixa etária. Esta é uma agenda prioritária do governo de Jair Bolsonaro, apesar de todas as adversidades enfrentadas pela educação brasileira, em especial, a educação básica, durante a pandemia do Coronavírus.

A opção de educar as crianças e jovens sob a responsabilidade das famílias é defendida atualmente por quem afirma que é direito dos pais escolherem a educação a ser ofertada aos seus filhos. Entre os apoiadores, estão aqueles que percebem essa prática como protetora dos jovens em relação a supostas “ideologias” transmitidas nas aulas e de possíveis práticas de violência no ambiente escolar. Líderes religiosos fundamentalistas e políticos de ultradireita estão entre os adeptos da ideia.

Os críticos do homeschooling observam que o sujeito do direito à educação é a criança e não a família. É dever do Estado garantir que ela tenha a oportunidade de acesso a uma educação regular em uma escola republicana, na qual o princípio da socialização permita que ela aprenda a conviver em sociedade, num ambiente plural e socioculturalmente diverso. Uma das funções da escola é desenvolver uma concepção de tolerância e colaboração, o que, na prática, só é possível na convivência com o outro, no caso, colegas de sala e escola e os professores. É, em primeiro lugar, para o aprendente, que a educação deve ser pensada.

De acordo com autores como Vigotsky, é na convivência com o outro que a criança se desenvolve plenamente. O ato de interagir com o outro cumpre papel fundamental na construção do saber. É graças ao outro que o sujeito aprendente é apresentado a situações que não pode vivenciar, que lhes chegam através da transmissão cultural. É o outro que atribui significado aos objetos que a criança não conhece e que lhe rodeia. Para Vigotsky, o desenvolvimento das representações mentais que permutam objetos do mundo real que a criança desenvolve ocorre principalmente pelos processos de interação, que levam a um aprendizado mediado por outro sujeito.

É por esse e por outros motivos que os estados modernos adotaram a escolarização obrigatória como uma das ferramentas da construção da democracia. Educadores como o norte-americano John Dewey destacaram, desde o começo do século passado, a importância da universalização do acesso à escola como uma peça-chave para o avanço da sociedade democrática. Na mesma linha, o educador Anísio Teixeira, em seu livro Educação para a Democracia, escrito em 1936, dizia que “Só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a escola pública”.

Da parte dos educadores, há uma ampla rejeição ao projeto. Mais de 350 organizações da sociedade civil, entre elas entidades sindicais, instituições acadêmicas, fóruns e movimentos sociais de diferentes matizes divulgaram o “Manifesto Contra a Regulamentação da Educação Domiciliar e em Defesa do Investimento nas Escolas Públicas”. Até movimentos de perfil empresarial, como o “Todos pela Educação”, apoiado pelo Banco Itaú, tem se pronunciado contra o homeschooling.

A participação das famílias na escola é considerada pelos especialistas como fundamental para potencializar o aprender. Pais, mães e responsáveis podem – e devem – participar da construção do Projeto Político-Pedagógico da Escola – PPP, compor os conselhos escolares, fiscalizar as verbas destinadas a cada unidade de ensino e contribuir com as principais decisões que impactam a aprendizagem e o dia a dia escolar. Mas não devem substituir a escola na vida dos filhos. Cada um tem um papel diferente a cumprir no processo.

Diferente do espaço de moradia, a escola é o lugar da educação formal e é meticulosamente organizada para isso. Nela, ocorre a avaliação do progresso da aprendizagem, que acontece diariamente e é acompanhada por profissionais como professores, pedagogos, psicólogos e psicopedagogos. A escola representa um espaço de interações sociais e múltiplas aprendizagens pela convivência com a diversidade e o respeito à diferença. A escola é, também, o lugar de exercício da pluralidade de pensamentos, aonde o indivíduo pode aprender a lutar por seus direitos.

Exatamente por isso, a educação escolar é contemplada por tratados e convenções internacionais que o  Brasil subscreve, pela nossa Constituição Federal, Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB e pela Lei 8069, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA como um direito da criança. Segundo este, em seu Artigo 54, é dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente o ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria. Já o artigo 55 afirma que os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino. A ausência dos filhos da escola pode levar, inclusive, à penalização dos pais ou responsáveis.

Foi graças a este arcabouço legal, junto com outras medidas, como por exemplo, a implantação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que o Brasil alcançou taxas elevadas de acesso à educação básica em todo o território nacional. É neste cenário que o país assiste ao avanço da proposta do homeschooling. Em plena pandemia, com o país estabelecendo outras prioridades, sem debate com a sociedade, podemos estar aprovando um grave retrocesso na garantia do direito à educação no Brasil.

Cremos que, no atual momento porque passa a sociedade brasileira, devemos nos posicionar firmemente de forma contrária ao ensino domiciliar, em oposição à aprovação do projeto de lei  3.262/2019. Entendemos que as prioridades da educação brasileira são outras, a exemplo da necessidade de se pressionar o Senado a rejeitar o veto 10/21 do presidente Jair Bolsonaro ao Projeto de Lei 3.477/20 que busca a garantia de acesso à internet, com fins educacionais, a alunos e a professores da educação básica pública e que permitirá maior conectividade e inclusão escolar, mantendo a decisão da Câmara.



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