Economia
Em meio a dados alarmantes, empreendedorismo abre espaço no mercado para pessoas trans, que recebem apoio de iniciativas para inclusão
Em um cenário de exclusão estrutural, pessoas trans e LGBTQIA+ encontram no empreendedorismo um caminho de resistência e autonomia financeira.
06/06/2025

Joana Maria (Foto: Reprodução/ redes sociais)
Anna Barros
A comunidade LGBTIA+, atualmente, equivale a 7% da população nacional, de acordo com o Datafolha. E, após a garantia de alguns direitos, costuma-se acreditar que não existe mais pelo o que lutar. No entanto, a necessidade de continuar sobrevivendo em meio a uma sociedade em que a expectativa de vida de pessoas trans é de 35 anos, demonstra que ainda há muito a ser mudado.
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De acordo com um dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), divulgado em abril deste ano, o Brasil segue sendo o um dos países que mais matam pessoas da comunidade trans no mundo. Em 2024, 122 mortes foram registradas.
Diante dessa violência estrutural que cerca a comunidade, o ambiente de trabalho não é uma exceção à regra. O Fórum de Empresas e Direitos LGBTQIA+ realizou um levantamento de dados que aponta que, em 51 empresas, 61% afirmaram empregar pessoas trans. Outras 16% disseram ter líderes transexuais.
O que chama a atenção é que, na maioria das empresas consultadas, o quadro de trabalhadores trans não chega a 1% em relação aos demais funcionários.
Considerando os percalços de existir e ainda se manter no mercado de trabalho, uma possibilidade é abraçada por muitas pessoas da comunidade: o empreendedorismo. Esse é o caso de Joana Maria – conhecida como Bruxe nas redes sociais –, que é artista e empreendedora.
Atualmente, a paraibana acumula 50 mil seguidores no Instagram – rede social em que divulga os seus trabalhos. Para ela, a exposição na internet vai além de compartilhar o cotidiano e sim sua própria exposição para que sua obra alcance outras pessoas. Em entrevista ao Portal WSCOM, Joana contou como a arte entrou para a sua vida como um alicerce para atritos internos e externos.
“A arte salvou a minha vida e me tirou das margens, sabe? E me deu a possibilidade de viver de outras formas, além do que a sociedade nos impõe a fazer. Então, produzindo arte, tendo esse contato com a arte, me tirou dos problemas físicos e problemas mentais que a sociedade sempre nos coloca para ter”, relatou a artista.
Quando o empreendedorismo se une à arte, ele se torna uma forma de resistência, de reconstruir o protagonismo para a vida de pessoas que, muitas vezes, são forçadas a ocuparem lugares de esquecimento.
“Tá empreendendo a forma de resistir contra o sistema, uma forma de ser vista, uma forma de ser vista mesmo, sabe? Uma forma de visibilidade real vem para nós, de ser tocada, de ser falada, de ser percebida”, contou.
O meio cultural e artístico é onde a maioria das pessoas da comunidade LGBTQIA+ encontram menos adversidades e maior liberdade para expor sua essência. No entanto, ainda sim, a linha de partida não é igual para todos.
“O mercado de arte é aberto para comunidade LGBT. Só que para comunidade trans, a gente tem que batalhar três vezes mais, sabe? Eu falo muito sobre isso, mas falando sobre LGBT total, eu acho que tem uma barreira muito grande para você conseguir o básico”, disse Joana.
E para quem que, assim como Joana, deseja redefinir sua própria história através do empreendedorismo, a artista deixa um recado: “O conselho que eu dou para outras pessoas que empreendem é que só empreendam, sabe? Só vendam, só continuem resistindo, não vai ser fácil, não foi de hoje, não é de um ano, não é de dois meses atrás, é de anos que vai construindo no meio da arte e anos que eu tento respirar um ar mais tranquilo, sabe? Para mim mesma, é com minha arte.”
Projetos que impulsionam
Em novembro de 2024, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) concluiu a primeira edição do projeto Transcender – Empreendedorismo LGBT+. A iniciativa, que aconteceu no Rio de Janeiro, buscava contribuir para a qualificação profissional dos empreendedores.

Em entrevista ao Portal WSCOM, a analista de Diversidade e Inclusão do Sebrae, Louise Nogueira, afirmou que essa foi a primeira vez que o Sebrae formulou um projeto totalmente voltado para a comunidade.
“O projeto Transcender – Empreendedorismo LGBT surgiu da necessidade da gente trabalhar os empreendedores da comunidade LGBTQIAPN+ de uma forma mais direcionada. Diante das necessidades e do perfil deles. O Sebrae ainda nunca tinha tido um projeto com essas características”, relatou Louise, que é responsável pelo projeto.
“Na realidade, muitos dos LGBTs têm dificuldade de se manter no mercado de trabalho. Principalmente as pessoas trans têm uma dificuldade imensa de se inserir no mercado de trabalho, então o empreendedorismo é uma saída para essas pessoas”, complementou.
Segundo a analista, o projeto ainda está no início, mas a expectativa é que ele se multiplique e auxilie mais pessoas a conquistarem a autonomia financeira através do empreendedorismo. Essa expansão do projeto deve ser feita, inicialmente, no interior do estado fluminense e, posteriormente, ir para outros cantos do Brasil.
“A ideia é a gente aos pouquinhos ir realizando alguns projetos piloto em cidades do interior, onde existe muito mais preconceito, muito mais resistência de trabalhos como esse. Mas existe essa intenção sim, eu acho que é um desafio”, contou.
“A gente percebe ainda que as pessoas trans não veem ainda o Sebrae como uma entidade que possa ajudá-los, assim, na sua grande maioria. Então a gente quer captar essas pessoas. E através do Sebrae Nacional a ideia é que a gente possa futuramente levar essa forma de trabalho para outros estados, com certeza, isso seria para nós um orgulho muito grande”, continuou a analista.
Dentre os pontos mais relevantes que são pautados dentro do projeto, Louise destacou três: planejamento de negócios, controle financeiro e marketing digital. Através do domínio desses temas, a chance do empreendimento ser bem sucedido aumenta consideravelmente.
Outros recortes
O pertencimento de pessoas com deficiência (PCDs) a espaços diversos muitas vezes nem é considerado. Quando esse fator se une às dificuldades enfrentadas pela comunidade LGBTQIA+, as camadas de exclusão se ampliam. Na busca de contrariar essa narrativa e garantir o protagonismo de pessoas PCDs da comunidade LGBITQIA+ em suas próprias vidas e em outros ambientes, Priscila Siqueira fundou a Organização Não Governamental (ONG) Vale PCD.

“O Vale PCD surgiu justamente dessa necessidade de se perceber pessoas com deficiência como seres interseccionais. Como pessoas que têm outros atravessamentos que não são puramente pessoas com deficiência. Então, a gente quer que as pessoas entendam que a gente tem sexualidade, que a gente tem identidades diversas”, introduziu.
Priscila, que também faz parte do setor de Diversidade e Inovação da TV Globo, pontuou que, para pessoas trans e PCDs, o nível de adversidades enfrentadas é ainda maior.
“As pessoas trans com deficiência enfrentam diversas camadas de exclusão que vão desde de uso do nome social até que se entenda que a pessoa com deficiência também têm identidades que não são aquelas dentro do padrão esperado. Também tem essa questão da falta de acessibilidade nos espaços de acolhimento. E toda violência que se passa dentro de casa é muito maior”, argumentou.
Entre as principais barreiras para as pessoas com deficiência está uma maior taxa de analfabetismo, além da falta de acessibilidade em ambientes públicos e privados.
“Tem toda a questão da invisibilidade social, tem a desconfiança constante da nossa capacidade, daquilo que a gente entrega. E no caso de pessoas trans, existe a transfobia institucionalizada. E tem muita barreira nos processos seletivos, a gente falando aí de mercado de trabalho, o que leva muita gente a cair no empreendedorismo”, pontuou.
“Quando se fala de uma minoria dentro de outra minoria, que é o caso de pessoas trans, existe aquela barreira da falta de crédito, existe ausência de rede de apoio e existe aquela barreira também da cisnormatividade. O nosso papel aqui, enquanto ONG, é justamente empoderar essas pessoas e buscar caminhos para que não suporte esse sejam abertas, mas para garantir que exista também uma acessibilidade. É um modo de quebrar todos esses preconceitos”, continuou.
Para impulsionar ainda mais a carreira no empreendedorismo dessas pessoas, a ONG atua de diversas maneiras. Entre elas está o Orienta Vale PCD, que é um conjunto de mentorias que também conta com parcerias com empresas.
“Quando uma pessoa com deficiência encontra um espaço para empreender, ela não só rompe um ciclo de exclusão, ela também abre caminhos para outras pessoas e também aspira outras pessoas ali dentro do recorte que ela ocupa. Então, empreender é criar sua própria narrativa, é abrir seu próprio espaço, é arrombar uma porta que tá fechada pra gente. Só que para isso funcionar, essa pessoa não pode estar sozinha, ela precisa ter suporte. Então, não dá pra gente romantizar a resiliência sem oferecer estrutura. A gente precisa desses incentivos. No final das contas, é sobre intencionalidade, é sobre o reconhecimento de pessoas com deficiência e da nossa pluralidade. É sobre a gente ser acolhido nesses espaços que já existem, mas que não tão considerando a nossa vivência”, disse Priscila, concluindo.
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