Geral

ELIZA x ELIZE


12/06/2012



 Eliza x Elize

A brutalidade não é constitutiva da natureza masculina, mas um dispositivo de uma sociedade que reduz as mulheres a objetos de prazer e consumo dos homens….(Patriarcado da Violência, Débora Diniz)

Gosto do filme de Woody Allen Melinda Melinda. Assisti há alguns anos,em Fortaleza, em companhia de Vitória Lima e Genilda Azeredo, e muito nos divertimos em ver e falar sobre os limites sutis entre a tragédia e comédia. A mesma estória sendo contada por dois pontos de vista, e de como as coisas são trágicas e cômicas sempre.

Não sei porque comecei a falar desse filme, pois o que vou falar não tem nada de cômico. É só tragédia. Talvez porque ao falar de dois nomes femininos, lembrei da repetição, que no meu caso se trata do eco de uma tragédia x tragédia. Duas tragédias anunciadas. Aparentemente diferentes, mas que tem pontos em comum.

Eliza Samudio, ex-namorada do goleiro Bruno, que foi sequestrada, torturada e morta, esquartejada e jogada aos cães. No artigo de Débora Diniz, “Patriarcado da violência”, já nem lembro mais em que jornal, ela diz: “O que motiva um homem a matar sua ex-namorada? O crime passional não é um ato de amor, mas de ódio. Em algum momento do encontro afetivo entre duas pessoas, o desejo de posse se converte em um impulso de aniquilamento: só a morte é capaz de silenciar o incômodo pela existência do outro.”

Elisa ficou grávida, pediu pensão, exibiu um vídeo na internet expondo a brutalidade de Bruno, e levou-o ao ódio latente de homens violentos em seus encontros afetivos. Terminou morta, sabendo com certeza dos seus algozes. Até hoje tudo ainda não ficou totalmente claro.

Elize Matsunaga, codinome Kelly, garota de programa que se relaciona com Marcos, empresário rico e de ascendência japonesa, começa a viver um conto de fadas. Elize, de aparência frágil, loura, enfermeira de formação, atiradora por diversão, matou o marido e depois cortou-o em pedaços e atirou-o à beira de algum caminho. Marcos Matsunaga, levou-a para morar num castelo de 500m2 , mas logo começou a ter amantes, também outras garotas de programa. Pelo depoimento das empregadas do casal, os dois brigavam muito; ele estava sempre a agredir seu passado, sua honra e sua família a chamar seu pai de vagabundo e a tocar nos seus brios. Elize descobre o flagrante do marido a traí-la e o acusa. Este fica indignado e ameaça interná-la e tomar a filha de um ano. E ainda mandá-la de volta ao “lixo de onde veio”. Elize se desespera e pega uma arma (presente do amado) e ameaça atirar. Nem assim Marcos se contém, e novamente xinga e diz que ela é burra e fraca. Pow! Tiro certeiro e depois de dez horas uma carnificida, esquartejamento, sacos plásticos, Cotia, Encaixotando Marcos…..

O caso Matsunaga trouxe à tona a desconstrução de que a violência doméstica é atributo das classes mais baixas. A classe alta evitava denunciar seus segredos de alcova, e havia o mito de que violência doméstica só existia dentro de favelas. Há mais mistérios entre quatro paredes dos ricos inclusive, do que a nossa vã filosofia. Basta lembrarmos das pesquisas da professora Lourdes Bandeira, suas palestras, onde muito ouvi sobre o tema, e a cada palavra de Lourdes, um número a mais nas estatísticas.

O Brasil inteiro em choque, pela frieza de Elize, por sua atitude tão violenta em contraste com sua aparência de A Bela da Tarde. Particularmente, sigo a linha da defesa da Elize (não que aplauda o seu feito), mas não acho que o assassinato tenha sido por motivo fútil, nem com requintes de crueldade (estes foram feitos depois do corpo já inerte). Também não defendo a morte de ninguém, mas fui lembrada (obrigada Aglaé Fernandes) que, a primeira Elisa reivindicou os seus direitos e foi morta e jogada à mantilha. Será que a segunda Elize teria o direito à separação de um homem que pelo jeito só gostava de se relacionar com garotas de programa? Fica a pergunta, e o estranhamento de um homem que para ir para cama, tinha suas preferências pelo produto pago, onde a ordem e a obediência eram assim mais fáceis… de se ter prazer. Executivo da Yoki, Marcos, quem sabe gostava mais das pipocas saltitantes…Amar alguém? Tem-se que ter disposição, disponibilidade, entrega, impermeabilidade, generosidade, irritação (mas não muita!), silêncios intermitentes, conversas, diálogos, carinhos com pipocas, ranger de dentes, muito sexo, respeito, e principalmente, saber os limites da fera nossa de cada dia, uma vez que, de acordo com estudiosos, somos todos, assassinos em potenciais.

A Revista Marie Claire de Junho, trás matéria sobre violência doméstica, com relato assustador de casos, que servem de alerta em um país onde, a cada duas horas, uma brasileira é assassinada. Relatos de homens que só transam com a arma na cabeça da mulher, de homens perseguidores, de blindagem à autoestima feminina, perseguições cruéis, e de como as mulheres sucumbem ao “estresse pós-traumático, comum em soldados sobreviventes a campos de batalha ou vítimas de grandes tragédias”, com sintomas de pânico, depressão, insônia, e tantas lesões psicológicas ou vestígios invisíveis a olho nu de sofrimentos profundos e irreversíveis.

Duas Elisas/ze, duas estórias, mortes, tragédias. Uma morreu, outra matou, mas a meu ver, tudo ligado à violência doméstica; a esse fantasma indecifrável da violência conjugal. Hoje, dia dos namorados, dia que os casais de amantes curtem luz de velas e romantismo, mas o Day After ainda é de embrulhar nossos estômagos.

A impunidade, a ambiguidade de sentimentos da natureza humana, os padrões culturais de opressão, os padrões sócias injustos, o modelo patriarcal, a mulher enquanto objeto de posse e prazer dos homens, uma ordem social perversa, a violência enquanto dispositivo cultural de uma sociedade patriarcal, os corpos femininos para consumo masculino, desejo como impulso de aniquilamento, a complexidade dos estudos de gênero , a vida dupla dos homens (pais de família x violentos), são tantos os questionamentos, e tão poucas as respostas, para a gente se defrontar com tantos casos limites, trágicos e inimagináveis.

Em tempos de crimes, para refletir as palavras do filósofo francês Pierre Bourdieu, em A Dominação Masculina, também citado na mesma reportagem: "Toda sociedade possui uma estrutura sexual de organização. Apesar das variações geográficas e econômicas, é quase certo que, dependendo do seu sexo, um bebê já tenha seu destino traçado desde o nascimento: se for homem, será dominante, se for mulher, dominada. Esses papéis são atribuídos culturalmente, aprendidos desde o berço e repetidos à exaustão ao longo da vida, abertamente ou de maneira subliminar. De tanto ser reproduzida, a mensagem é introjetada , e homens e mulheres passam a tratar a divisão sexual como "natural", "parte da ordem das coisas". Para Bourdieu, é dessa maneira que a dominação masculina se estabelece. Ele ainda fala da marcha silenciosa de costumes, hábitos e crenças que mantém homens e mulheres em posição assimétrica, e que, a face mais cruel da engrenagem de dominação é a violência do marido contra a mulher, violência essa que, há milênios, produz vítimas…."

No Dia dos Namorados um brinde á vida. Um brinde ao Amor!

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa , 12 de junho, 2012



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