Política

‘Do Porto Político à Política no Porto ou uma fábula sobre tecnocracia e roedores’, por Ângelo Emílio da Silva Pessoa


30/05/2020

Por Ângelo Emílio da Silva Pessoa



As obras tinham um preço ignorado pelos ingênuos e escondido pelos espertos.
Naquelas águas lamacentas, além do lodo, há um lixo moral
José Joffily. O Porto Político (1983)

 Em 1983, o intelectual paraibano José Joffily deu a lume um livro intitulado “O Porto Político” (Civilização Brasileira), no qual aborda as rumorosas negociatas que se deram na Paraíba na primeira metade da década de 1920, em torno da construção do portentoso “Porto Internacional do Sanhauá”.

Na obra, alinham-se demonstrações de comportamentos humanos nada recomendáveis, como cupidez, incompetência, truculência, omissão, bajulação, exploração e outros. Falcatruas, contratos viciados, autoridades corrompidas, empresas de fancaria (verdeamarelistas e internacionalistas, num linguajar à Odorico Paraguaçu), desvio de materiais, degradação ambiental, repressão política, exploração do trabalho desfilam ao longo da obra. A impunidade dos mais grados é a regra do jogo. O prejuízo aos mais pobres é seu corolário. Páginas e páginas apresentam o nome de muitos bois ou de todo um rebanho cevado no repasto do dinheiro público, ou, no saboroso linguajar de Joffily: “Sem tapa-olho nem perna-de-pau, praticava-se desenfreada pirataria nos cofres públicos, acobertada por contrato “devidamente legalizado” garantindo os 15%…”.

Tempos vão, tempos vêm. No final da obra, o autor mostra as grandes vítimas de toda essa grande “empresa”: o Rio Sanhauá, degradado pelas “obras” (e 587 estacas de concreto soterradas no lamaçal, fora enorme quantidade de material desviado); e os trabalhadores, inicialmente mal pagos, posteriormente não pagos e, finalmente, reprimidos, quando passaram a reivindicar seu legítimo direito. Enquanto isso, gordas fortunas se fizeram entre aqueles que se refestelaram com o banquete do Porto Político. Muitos netinhos devem seu conforto de hoje ao “tino” dos criativos vovôs daquelas belas eras…

Agora, mais um projeto grandioso se esboça naquelas margens, e mais uma vez se ignora solenemente a participação e os mais básicos direitos dos principais interessados: quem mora e trabalha no lugar.

Quis a nossa imaginação tecnocrática criar um belíssimo porto turístico, com “recuperação” de um suposto “passado colonial”, do qual, evidentemente, se procede a assepsia dos pobres e de todos aqueles não convidados para o opíparo banquete dos donos do poder local.

Vamos começar com um pouco de História…

Existiu, na região onde hoje se situa o Porto do Capim, um primitivo porto no qual se procedia parte substancial do comércio da velha Cidade da Parahyba com regiões distantes. Quem conhece algo de um porto na Colônia e no Império, sabe muito bem que esse espaço está longe de ser um lugar idílico, no qual nhonôs e iaiás tomariam seu chazinho ao cair da tarde. As zonas portuárias, para além de suas atividades propriamente comerciais, eram lugares de moradia e vivência das pessoas mais modestas do lugar: trabalhadores braçais, trabalhadoras domésticas, libertos, enfim, a população menos aquinhoada dessas cidades. Seria à toa que o lugar contíguo ao cais do Porto se chamava Zumbi até pelo menos meados do século XIX? De onde viria tal denominação?

Bom, se desejamos, sinceramente, “resgatar” o tal passado, que tal renomearmos o lugar de Zumbi e deixarmos de importunar as pessoas que lá vivem e trabalham tal e qual as pessoas viveram e trabalharam por lá desde que existiu um porto na região?

Os poucos dados disponíveis para a Cidade, anteriores ao século XX, mostram que toda a área do Varadouro era ocupada por plantio de capim (donde o nome popular do lugar), algumas roças, pequenas olarias, atividades pesqueiras, enfim, na região se desenvolvia uma pequena economia e residiam pessoas ligadas a essas atividades. Um pouco acima do Varadouro, na Rua das Convertidas (nome dado por lá haver sido construída, por determinação do Bispo de Pernambuco, uma Casa de Mulheres Convertidas, que haviam deixado a prostituição), existia uma Cacimba de uso público, cuja qual um certo Padre Antônio Lourenço tentou privatizar e cobrar pelo acesso – numa atitude pouco digna de sua condição –, e que gerou firme reação de pessoas locais, entre as quais umas mulheres apelidadas como “As Venâncias”, que poderiam ser espécie de padroeiras das mulheres lutadoras que labutam com as próprias mãos pelo pão diário.

Então, se o argumento é a “recuperação da história”, nada que surgira um moderno porto turístico pode dar “embasamento histórico” ao aludido projeto. Trata-se, apenas, da projeção de um passado imaginado e imaginário, um passado efetivamente inventado para gáudio de um modelo de turismo equivocado e não-cidadão.
Seria de bom alvitre escapar da peça publicitária e dialogar com os pés no chão.

Primeiramente, reconhecer que naquele chão há gente, gente que mora e labuta há tempos por ali. Há um projeto “contemporâneo” de requalificação urbana da área, envolvendo questões de moradia e de desenvolvimento de atividades turísticas.

Até aí nada de errado se tal projeto envolver práticas democráticas – e estamos bem perto de um flerte com a truculência, da qual é sábio a autoridade recuar – e uma ampla discussão. Não se trata apenas de alguns moradores da região passarem a ter novos lugares de residência dignos e próximos, trata-se de questionar se eles próprios (por via particular ou de cooperativas) terão acesso às atividades econômicas ligadas ao turismo e em função de protagonismo (e não apenas herdando as atividades mais pesadas e menos remuneradas de toda a cadeia associada ao turismo).

Em português mais direto: um vendedor de pipocas ou de cachorro quente que atua na região poderá comerciar no pretenso novo Porto ou será enxotado como “invasor indesejado” do lugar onde um dia residiu e trabalhou?

O movimento comunitário não deve ser visto pela autoridade como uma ameaça, mas como uma parceria de quem vive e conhece o lugar e pode, com o seu esforço e os seus talentos, tornar o projeto em algo que supere o já conhecido lema: “os bons negócios para poucos e os grandes prejuízos para a maioria”.

Um projeto turístico só se sustenta se estiver efetivamente alicerçado na comunidade que lhe dá origem e sentido. Monumentos vazios, dependendo da presença de “gente de fora” tendem a se tornar solenes ruínas em um tempo mais ou menos dilatado. A presença de moradores é que é a verdadeira “revitalização” de um lugar. O higienismo social é a porta para mais exclusão social e o cortejo de violência a ela associado. Em termos patrimoniais, é fundamental entender que o grande e primeiro patrimônio são as pessoas.

Precisamos dialogar no sentido de ir além de um Porto Político e fazer efetivamente a Política no Porto.



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