Alberto Arcela

Publicitário e jornalista

Sociedade

Vida que segue


02/11/2023

 

 

Aprendi cedo a conviver com a figura da morte, e seus efeitos para os que ficam nesse mundo com os pertences e as lembranças dos que partem para o desconhecido.

A perda do meu pai, que mal acabara de conhecer – eu tinha então quatro anos quando ele foi atropelado por um ônibus sem freio na porta da Rádio Tabajara – deixou sequelas profundas em toda a família.

A ela se seguiram outras tantas mortes, como na lista de Oswaldo Montenegro, um obituário que virou uma canção, igualzinho ao que eu ouvia na Rádio Arapuan, no tempo em que as emissoras cobravam para anunciar falecimentos nos programas de Nauda de Abreu e Ari Silva, ambos já falecidos.

Hoje, as mídias sociais cumprem a contento esse papel, com a vantagem de mostrar a foto – ás vezes várias delas – e toda a ficha de quem se foi, inclusive a sua vida pregressa como se dizia no Róger.

E temos também o celular com câmeras maravilhosas e grupos da família, dos melhores amigos e até mesmo de admiradores quando a pessoa é famosa.

Enfim, um arsenal de aplicativos e ferramentas ao alcance de todos, que eleva a comunicação da passagem a níveis jamais imaginados décadas atrás, quando ainda se valorizava a profissão da carpideira, que é paga para chorar no velório.

Aliás, essa história de carpideira é de uma singularidade e singeleza sem igual. Transcende a realidade pura e simples, e na sua essência, flerta com a poesia, quando ela incorpora a dor de quem não conhece, e extravasa a perda com um sentimento que ela conhece bem.

Sempre fui fascinado por elas, as mulheres que choram as dores do mundo. Que fazem da morte uma profissão, como o coveiro que se alimenta da dor alheia, o sentimento que ninguém sabe de onde vem e para onde vai.

Senti isso com mais clareza na morte e no sepultamento da minha mãe e do meu irmão Tota, que era uma parte de mim, da minha cultura e das minhas descobertas.

Foram as minhas maiores perdas, mas não foram as únicas. E nem as últimas. Alguns eram amigos de infância e muitos outros foram amigos adquiridos com o passar do tempo. Nas escolas, na resistência política e nos locais de trabalho.

Todos eles, de uma certa forma, foram fundamentais para a minha formação e essenciais para eu ser a pessoa que sou hoje, mais paciente e muito mais tolerante com as coisas que eu não concordo.

Curiosamente, não lembro de ter perdido um amor sequer em todos esses anos. Nem mesmo o primeiro amor que o tempo não levou. E nem os amores que se seguiram, cada uma com sua beleza e o seu jeito de ser.

Com elas, tive o melhor da vida, e pude desenvolver o meu lado poeta e também o lado triste, de não estar junto até que a morte nos separe.

Mas, enfim, tudo tem a ver com o destino que é imponderável e imprevisível, e que faz com que vivamos perigosamente porque não podemos ler o que nos reserva o livro do vivos e dos mortos.

Por isso, meu pai saiu de casa naquele sábado, sem saber que, no outro lado da cidade um cabo iria se quebrar e que isso causaria a sua morte.

E por isso, também, minha mãe se esqueceu de se despedir dos filhos quando foi dormir num sábado à noite para não mais acordar.

Essa é a dinâmica da vida. Que sempre segue o seu rumo. A roda viva de Chico Buarque que está sempre em movimento e o back to black de Amy Winehouse que a minha vitrola insiste em tocar.

Simples assim.


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