Rui Leitão

Jornalista e escritor.

Geral

“Vai passar”


24/04/2014

Foto: autor desconhecido.

Chico Buarque e Francis Hime lançaram o samba enredo “Vai Passar” em 1984, quando o Brasil saia de um duro período de ditadura militar, a letra fala do carnaval como o momento em que nosso povo procura se afastar dos problemas e cair na folia. Assim, como se fosse uma fuga da opressão e da tirania a que fomos submetidos em duas épocas “infelizes” da nossa história: o Brasil Colônia, oportunidade em que fomos explorados pela Coroa Portuguesa e palco de uma cruel escravatura, e os “anos de chumbo”, tempo em que deixamos de ser livres e fomos oprimidos e atormentados pelos que assumiram o governo após o golpe de 1964.

“Vai passar/Nessa avenida um samba popular/Cada paralelepípedo/Da velha cidade/Essa noite vai/Se arrepiar/Ao lembrar/Que aqui passaram sambas imortais/Que aqui sangraram pelos nossos pés/Que aqui sambaram nossos ancestrais”. O desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro acontecia na Avenida Presidente Vargas, que era pavimentada por paralelepípedos, antes da construção do sambódromo. Por isso a música diz que até as pedras se “arrepiavam” na passagem do samba popular, porque foram pisadas em tempos pretéritos pelos escravos que por lá sangraram seus pés submetidos ao jugo dos colonizadores. Naquela avenida sambas que se imortalizaram fizeram presença. Lá, nossos antepassados também festejaram o carnaval.

“Num tempo/Página infeliz da nossa história/Passagem desbotada na memória/Das nossas novas gerações”. Na verdade os compositores se referem a duas “páginas infelizes” da nossa história: o período colonial (1500 até 1822) e a ditadura militar, instaurada nos anos sessenta. Fases negras que nossa memória relembra com vergonha de terem acontecido, e que as novas gerações conhecem tão pouco.

“Dormia/A nossa pátria mãe tão distraída/Sem perceber que era subtraída/Por tenebrosas transações”. Deitada em berço esplêndido a nossa nação quase sempre vive sendo subtraída, enganada, roubada. Foi assim quando os portugueses pagaram sua dívida com a Inglaterra explorando nossas riquezas e quando éramos lesados na nossa boa fé ao tempo em que os militares torturavam, perseguiam, assassinavam nossos compatriotas que não concordavam com o regime político imposto. Eram negociatas sujas, envoltas em mistério, indecentes, desonestas, que beneficiavam os poderosos em detrimento da população pobre.

“Seus filhos/Erravam cegos pelo continente/Levavam pedras feito penitentes/Erguendo estranhas catedrais”. Os negros eram conduzidos na imensidão do nosso território, perdidos sem saber sequer onde estavam na condição de escravos a serviço da Colônia Portuguesa. Viviam sob intenso sofrimento, atormentados, humilhados, desconsiderados como gente para satisfazer a ganância e a ambição do sistema. Construíam um Brasil que não tinha nada a ver com sua cultura de origem, nem dele participarem, “estranhas catedrais”. Da mesma forma, assim eram tratados nossos compatriotas que ousaram contestar o regime militar instalado no país a partir do golpe de 1964. Exilados, percorriam caminhos desconhecidos no continente tentando se livrar da sanha assassina dos que estavam no poder.

“E um dia, afinal/Tinham direito a uma alegria fugaz/Uma ofegante epidemia/Que se chamava carnaval/O carnaval, o carnaval”. O tríduo momesco é uma espécie de grito de liberdade para o brasileiro, o momento em que ele se liberta dos problemas que o afligem no cotidiano. Uma alegria passageira, fugaz, mas o suficiente para afugentar a tristeza, as preocupações, as decepções e a desesperança. É algo que contagia, se transforma numa anarquia coletiva, sem regras, sem preconceitos, onde todos se sentem circunstancialmente iguais e livres.

“(Vai passar) Palmas pra a ala dos barões famintos/O bloco dos napoleões retintos/E os pigmeus do boulevard”. Ironizando, o samba pede palmas para os “barões famintos”, os que enriquecem a custa do sacrifício dos menos favorecidos pela sorte e pelas políticas públicas. Os “napoleões retintos” são os que usam o poder para ludibriar, atraiçoar, mentir, usando o povo como massa de manobra. Os “pigmeus do boulevard” são os burgueses que vivem de aparência, por isso mesmo submissos aos ditames dos que detêm a força e o poder, para não perderem a pose. Os aplausos solicitados é um sarcasmo, uma zombaria, uma crítica bem humorada aos que se imaginam donos do mundo.

“Meu Deus, vem olhar/Vem ver de perto uma cidade a cantar/A evolução da liberdade/Até o dia clarear”. O convite a que todos observem como o brasileiro sabe cantar, apesar dos pesares, se alegrar ainda que enfrentando dificuldades, transbordar sentimentos de felicidade mesmo que tentem fazê-lo triste. O grito de liberdade nunca vai deixar de ecoar, custe o que custar, e no carnaval ele se expressa espontaneamente, junto com o canto do samba na avenida.

“Ai que vida boa, ôlerê/Ai que vida boa, ôlara/O estandarte do sanatório geral/Vai passar”. A sensação de que a vida é boa, experimentada nos três dias de carnaval. Funciona como se todos, numa maravilhosa loucura, estivessem num sanatório buscando a cura do padecimento, a enfermidade causada pelo sentimento de impotência para mudar o curso dos acontecimentos e dos dissabores da vida.

• Integra a série de crônicas “PENSANDO ATRAVÉS DA MÚSICA”.

 


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