Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

Uma Tarde Abensonhada com Mia Couto


23/11/2010

Foto: autor desconhecido.

 BIOFAGIA

Meu vício
é vitalício: comer a Vida
deitando-a entontecida
sobre o linho do idioma.

Nesse leito transverso
dispo-a com um só verso.

Até chegar ao fim da voz.

Até ser um corpo sem foz.

Maputo, 2006, in Idades, Cidades, Divindades (2007)

Para minhas amigas Lu Damasceno (obrigada pelo poema), Vitória e Genilda, por compartilharmos desse momento de puro êxtase e versos.
Para Flávia Maia, por dividir seus conhecimentos sobre Mia Couto,
Parabéns póstumos para meu pai, que ontem, no dia da Bandeira, estaria completando 90 anos de vida, e também de estórias muito bem contadas.
& Parabéns para Juca, o aniversariante da semana, e que precisa ainda, aprender à dançar e à escutar estórias …

Sexta Feira passada, fui ver o escritor moçambicano Mia Couto. Uma tarde de pura alegria e felicidade. Bliss total! Pela vista esplendorosa do mar do Cabo Branco, na Estação Ciência; por conhecer esse monstro/ ou melhor dizendo esse “gato” ensimesmado, literalmente, da literatura africana; pela companhia de amigas (Lu, Vitória Lima e Genilda Azeredo); por ouvir Chico César convidar para a merenda; e por compartilhar estórias tão bem contadas.

Mia Couto veio participar do projeto da Funjope, “Que tal, quinta?”, encontros de literatura e artes, que acontecem mensalmente, com caráter aberto e lúdico, e que visa criar um ponto de contato entre autor e público, e incentivar esse diálogo . Nessa Quinta em particular, tivemos a participação das professoras e pesquisadoras da UFPB Flávia Maia e Elisalva Madruga, como também a exibição do documentário “O Desenhador da Palavra”, que tive a oportunidade de assistir por ocasião do último Cineport.

A primeira vez que ouvi falar desse autor, foi através de uma leitora voraz de suas estórias de Terras Sonâmbulas, de Miçangas, de Sereias, de Chuvas Pasmadas, de Mar me Quer, de Rios e Tempos…., Lu Damasceno. A princípio, como todos que recebem a sua literatura, também pensei que fosse uma mulher. E uma negra. Que aliás, ele, muito esperto e sagaz, já começa sua fala, comentando sobre esse estar fora do lugar em que se encontra, já a partir do seu nome, e exclama: A minha raça sou eu mesmo!”

Anos mais tarde, vivi de pertinho a trajetória de outra amiga, Flávia Maia, em busca de um autor para seu projeto de Doutorado. E depois de perambular por outros escritores, eis que conversamos sobre os Africanos, Agualusa e Mia Couto. Pronto! A paixão estava criada e Flávia devorou literalmente à obra de Mia, transformando seu saber em tese sobre identidade, memórias e o tempo. E, junto com Ana Marinho (Coordenadora da pós em Letras), traçaram perguntas meio ao encantamento de ter seu autor, seu objeto, sentadinho ao seu lado. E nós, público, sentadinhas em frente.

Mia começou contando uma estória engraçada da sua primeira vinda a São Paulo; do medo imposto pelo temor da filha; do terror de ser seqüestrado, e de como concretizou esse medo imaginário pelo taxista mal encarado, o carro mal enjambrado, e ainda a lhe oferecer de forma suspeita: O Sr. aceita uma balinha? E conclui abnegado, com as mãos suando frio: “Será a morte mais gentil de que alguém já tenha ouvido falar!”

Mia falou da sua outra profissão, a de biólogo, e de como isso não o faz um outro , mas pelo contrário, a imbricação do mesmo. Afinal a Biologia está diretamente em contato com pequenas estórias da própria vida, exclamou. A linguagem das árvores e dos bichos! De resto, se classifica como um tradutor, e não como escritor, pois: “Se me entregar ao escritor serei devorado”. Esse devorar/antropofágico, se revela pelo fato dos escritores serem vistos como seres iluminados. Mia se identifica mais como um brincante, por conta da leveza da dança, e de como o mundo o exige por essa tradução.

Mia se diz também um escutador. Fala do ponto de vista da oralidade de Moçambique, a sua África, com tantas línguas, tantas culturas, que impossível ver um só mapa. Realidade fantástica que não tem nada de fantástico, uma vez que esse mesmo fantástico se trata da pura realidade dessas vozes e desses silêncios. Escrevo sem planos! Disse quando perguntado sobre seu processo de criação. E é na indolência da vida que o meu criar se im/compõe.

Mia contou estórias para um público atento e absorto . Cheguei a olhar o oceano gigante que se fazia presente naquela tarde morna, e imaginar que nadando sempre, chegaria em África! Era assim que dizíamos, nós e as primas veraneando em Praia Formosa: Se nadarmos em linha reta, chegaremos lá! O lado de lá! E cá estamos! Brasileiras descobertas por Santa Maria, Pinta e Nina!

Mia falou dos autores mais presentes no seu imaginário: Guimarães Rosa e a invenção das palavras e de um sertão como espaço da ordem da linguagem mais que da geografia; Drummond e as pedras no caminho; Chico Buarque cantarolando Valsinha, Jorge Amado, a influência maior em todo seu país; Adélia Prado, João Cabral e a economia das palavras, Caymmi e a incompreensão do: …é doce morrer no mar…, assim também como outras palavras e suas diversos significados: Inhaca! Como imaginar o riso das pessoas a cada vez que citava esse lugar que tem a raiz etmológica nos maus cheiros. Falou também da travessia, das viagens que se dão no interior, e da casa que nos habita. Comentou sobre seus belos títulos: Estórias Abensonhadas: Um Rio chamado tempo, uma casa chamada terra, e de como precisa desses títulos para terminar suas estórias, assim também como da primeira frase. Como não lembrar da primeira frase do romance Mrs. Dalloway (Virginia Woolf) e de As Horas (Michael Cunningham): “Mrs. Dalloway disse que ela mesma compraria as flores!”

E quando indagado sobre Samora Machel, falou emocionado do seu encontro com o revolucionário e de como, ele frente ao mito, não saberia contar uma história de sofrimento, tendo que inventar uma para não fazer feio. Nem tão pouco sabia dançar, como forma de expressão. E que Samora o aconselhou: “Se não sabes dançar nem contar uma estória, tens que rever sua vida! Já que estás diante de uma certa aridez”.Temos que ter de pronto a ficção da nossa própria estória, finalizou .E de conversa em conversa, Mia falou da emoção de conhecer Chico César, quem já ouvia cantar Mama África, in loco…

O escritor e poeta Ronaldo Monte, se encarregou de encerrar as perguntas , lendo sua crônica ímpar: O Paletó de Mia Couto, arrancando gargalhadas e aplausos por invejar o seu traje, mas até que seus escritos e seu sucesso para com às mulheres.

E ao final, quando já estávamos todos miando para Mia Couto, felizes na fila de autógrafos, todos com seu montinho de livros fresquinhos debaixo do braço, fomos tomar vinho na beira mar, sob o olhar suspeito de uma lua de prata, para que, apesar do cardápio à Marguerita, nem tudo acabasse em pizza!

E assim, de mio em mio, me preparo para uma semana de estórias, abensonhadas ou não, através do evento da UFPB – Conhecimento Em Debate, e a Feira do Livro no Espaço Cultural, esperando ansiosamente por Fabrício Carpinejar e sua mulheres perdigueiras, por Marina Colasanti e sua Poesia em Trânsito, Amador, e seu Muitos: Outras Leituras de Caetano, .e Arnaldo Antunes, e sua festa de arromba na laje!!!!!!!!!! Nem sempre sobre esses assuntos só, e nem sempre nessa mesma ordem.

Embora esteja feliz com tanto acalanto literário, fiquei frustrada por não ter me organizado para ir ver Paul McCartney cantar Hey Jude. Os Beatles foram trilha de toda uma vida, e não era para ter subestimado um concerto desses. Todo e qualquer empenho, empréstimo e cansaço teria valido à pena. Shame on you! Gracias aos canais abertos e fechados, estive a postos cantando, dançando, amando e rezando, pois , ao contrário de Mia Couto, bailo pelos quatro cantos, desde que me entendo por gente.

E como é gostoso o meu Inglês! Let it Be! Com os olhos rasos d´água.

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa 20/11/2010


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