Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Paraíba

Uma calçada toda sua


29/12/2020

Imagem: FREEPIK

Nesta pandemia, dou glórias todos os dias de morar bem. De ter um teto todo meu. Conforto. Contas pagas e comida na mesa. Para mim, isto é felicidade. Fruto de trabalho de toda uma vida, pude ficar em isolamento social e, por entre quatro paredes, buscar os sonhos, a imaginação, o alento, o bem estar, e mesmo quando estava sozinha, me fazer companhia. E das boas, para encontrar o sossego de não me estremunhar comigo mesma e descer as ladeiras dos estados de espíritos sombrios. Não é fácil mesmo assim. Mas sei que, um mar de gente, não tem moradia, comida, saúde, e sofre dores as quais nem consigo dimensionar.

Outro dia, vindo da Padaria Bonfim, entrei na Rua Helena Meira Lima em Tambaú, e quando parei no sinal, um casal estava a morar na calçada. Uns panos e alguns enganos por entre o meio fio e uma árvore frondosa. Tendo como cenário ao fundo, um edifício de classe média. Uns caixotes, uns molambos, depósitos de comida, água. Olhei abismada. Tinha cartazes pedindo ajuda. E justificando que não tinham para onde ir. Aliás, as esquinas da cidade estão povoadas por esse mais novo morador de rua. Pessoas que, na pandemia, perderam empregos ou o restinho que tinham para ter um abrigo, mesmo que esse lugar fosse precário. Nem essa precariedade se tem mais. Saí no meu carro, a pensar naquela situação. O que fazer num pedaço de calçada diante dos passantes, carros, transeuntes? O embaraço? O constrangimento de estar ali. Sentados. Sem ter comida, onde sentar, onde dormir, fazer xixi e mais…, onde ter um mínimo de dignidade. Mas, com o nosso torpor, cheguei em casa, uma coisa e outra, e esqueci.

Ontem, um mês depois, passei novamente pelo mesmo lugar. E fiquei mais estarrecida ainda. O homem e a “sua casa”, continuavam lá. Agora ele estava sozinho e parecia mais em casa, na “sua casa-calçada”! Pasmem! tranquilamente, domesticamente, varria o seu pedaço de latifúndio. De vassoura em punho, gentilmente varria o seu quadrado. Lembrei-me do meu esforço durante cinco meses em cuidar do meu confortável canto; a comprar as geringonças domésticas, a reclamar da vida, enquanto lavava o banheiro, a louça e cozinhava. A geladeira repleta. E um vinhozinho por ali, esperando a hora do lusco fusco. Enterneci-me com aquela cena pra Edward Hopper nenhum botar defeito. Hopper, pintor e artista gráfico americano, que tão bem desenhou, pintou, ilustrou e representou a solidão urbana na contemporaneidade. O tema das suas pinturas, sempre as paisagens urbanas, porém, desertas, melancólicas e iluminadas por uma luz estranha e um silêncio perturbador. Nos seus quadros pode-se ver esse vazio, desolação e estagnação da vida humana, retratados por figuras anônimas. Hopper fora desafiado por um dos seus mestres a “fazer um movimento no mundo”, e pelo visto fez. Mas nem a esse movimento no mundo, o homem e sua casa-calçada não pertencia; miséria demais, até mesmo para essa representação do pintor das cenas do cotidiano solitário. Tudo isso me passava na cabeça enquanto eu estava parada no sinal fechado de novo. E pensei na música de Paulinho da Viola também – “Olá como vai? Eu ou indo e você?”. Mas como cantar, vendo tal cena? Uma afronta aquele homem mal vestido, de vassoura em punho, tentando às duras penas sobreviver. Nem falo da Covid, mas da fome, da vida. Como me cabia cantarolar? Silenciei em respeito. E com um gosto amargo no estômago.

Recentemente tivemos o segundo turno das eleições municipais. Uma eleição triste. Um debate que assisti um pouco e me deu sono, desilusão, des-esperança. Mas eis um dos desafios para o prefeito eleito, Cícero Lucena: moradia e saciar a fome dos desvalidos e esquecidos por muitos de nós e por vocês, os políticos.

Ana Adelaide Peixoto.


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