Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

Um Outro Olhar


20/07/2010

Foto: autor desconhecido.

 Para Teca

Ocidente é Ocidente, Oriente é Oriente, e nunca os dois hão de encontrar-se.
(Rudyard Kipling)

Não estou a falar de algum personagem de Proust…., mas de alguém que há 23 anos mora fora do seu país. Nesses anos todos, sempre que ela aporta por aqui, todos da família se mobilizam para aproveitá-la cada minutinho, com prazer, alegrias e saudades. Sempre tentando não perder os vínculos que o tempo pudesse esmaecê-los. E durante esse tempo de Brasil, nós daqui, também viramos todos turistas na nossa própria cidade.

Dessa vez não foi diferente.E a agenda é sempre a mesma. Ou Quase. Feijoada, caipirinha, reuniões com as primas, com os amigos (alguns poucos de antigamente); visita aos tios mais velhos; praia, banho de mar e guaiamum; tapioca com café; peixes e caldeiradas; castanhas, pinhas e sapotis; mercado de artesanato; calçadinha e água de côco; sorvete de graviola e ouvir as ondas na maré cheia, tomando o último gole de cerveja gelada: Lager, please! Sim! Esse ano teve o diferencial da Copa do Mundo, que mesmo desastrosa, foi motivo para mais reuniões, torcida e bolinhos de bacalhau. Mas teve também os noticiários do Caso Bruno, nos horrorizando cada vez mais com a violência contra a mulher. Mas como não só de alegria se fazem as viagens, teve também homenagem aos mortos: nossa despedida de D. Vanilde Costa, uma vizinha-amiga de sempre.

Mas , a cada ano, o olhar da estrangeira tem sempre um olhar inaugural para com a sua terra. E nós aqui, já tão acostumbrados com nosso território tropical, juntas, também vamos olhando ao redor, e re-vendo conceitos e paisagens. Confesso que cada visita sua, o meu olhar muda o foco. É outro, tanto em relação à cidade, à vizinhança, como também para dentro de mim mesma. Descobrimo-nos seres estranhos por vezes.

Teca não tem empregada doméstica, como é comum na Europa. Mora em Penarth, País de Gales. Mas todos aqui, falam que mora na Inglaterra, país onde morou por 7 anos. E para nós abaixo da linha do Equador, País de Gales, Escócia , Irlanda, Londres…onde estão mesmo as diferenças? Sua casa é de estilo vitoriana, com bay window e alfazemas no jardim. Uma rua com brumas e silêncios. Uma estação de trem na esquina e ponto: logo Cardiff Bay e as Arcadas do centro, com direito a castelo, brownies e batons da M.A.C. As gaivotas sempre piando, numa praia com píer também vitoriano, e seixos pretos lisinhos na Sea Shore, compõem o cenário Galês dos seus arredores. Cenário de filme eu diria. Daqueles com penumbras, galopes de heróis, e mocinhas tinhosas cheias de razão e sensibilidade.

Aqui, a Epitácio Pessoa buzina nos seus ouvidos. Ela agradece gentilmente às nossas serviçais, por cada café na mesa. Se estamos em grupo grande, e falamos todas ao mesmo tempo, ela não escuta. Seus ouvidos estão treinados para ouvir enquanto falamos e só depois então se pronunciar. Lembro de como papai admirou isso no então genro, que vinha visitá-lo pela primeira vez. Pois Teca fica perdida e zonza, e não consegue participar das conversas como antigamente. Seu gestual é polido, poucos movimentos contidos, e o timbre sempre baixinho. E eu, que grito muito, gesticulo muito, e arengo muito…., me sinto uma mulher escandalosa e às vezes fora do lugar. Engraçado que, meu pai era um homem assim, nascido e criado na Rua Visconde de Pelotas, mas com elegância intrínseca ao seu caráter. Falava manso, baixo, calmo e polido como um Inglês! Tinha puxado aos Mindelos e Balthar, à minha bisavó que tinha meu nome, à minha madrinha Angelina, pessoas tão doces e delicadas, mas nem por isso lhes faltavam assertividade e competência na vida. Mas meu pai também trincava os dentes quando algum talher caia da mesa….Coisas do outro lado da genética. E parece que eu fiquei com essa porção Júlia (uma tia com quem pareço. Dizem… ), exacerbada feito tatuagem. E falando do nosso pai Teca, hoje, dia 20 de julho, à 18 anos atrás, nos despedia-nos dele, que virava uma estrela. Sincronicidades à parte, levarei flores à sua última morada, e contarei todas essas estórias….

Pois bem, depois desses anos todos, começo a perceber que, com cada vinda da minha irmã, também passo a ter outro olhar sobre as coisas que dizemos serem boas ou ruins do Brasil. E vice-versa. O improviso, os jeitinhos, a cordialidade, as batucadas e os clarinetes de Paulo Moura – cada vez mais nos diferencia na nossa excelência. Já as crianças abandonadas nos sinais; o trânsito de João Pessoa; a falta de educação; os serviços; a morosidade nos atendimentos; a arquitetura da cidade (ou a transformação dos prédios, ruas, e avenidas); a sujeira…., e todos os aviões de forró. Acho que, nenhum motivo de orgulho.

Depois de tantos anos,vejo na minha irmã um olhar de estrangeira…sem no entanto perder sua brasilidade jamais. Adora ver cocar de índio nas feiras. Colares de contas de açaí e bonecas de barro. Mas ao mesmo tempo, com tantos séculos de tradição do seu país adotado, já não lhes permite pregar balangandãs nas suas paredes centenárias. Nossas férias em casa são tão domésticas e genuínas: shopping, um filme, um livro, conversa jogada fora, e dormir até mais tarde. Enquanto às suas: esportes de inverno; lugares exóticos e distantes. Nossas aventuras? as do cotidiano, às suas? Mergulhos no Egito, sailing pela Grécia (quem sabe To Byzantium? To lords and ladies of Byzantium / Of what is past, or passing, or to come), e esquiar em montanhas nevadas e assustadoras. E nessa troca de impressões entre o distante e o perto; o lá e o cá; entre os lugares e as fronteiras, vamos percebendo cada vez mais os nossos tristes trópicos.

Fico a lembrar do personagem da Sra. Sen, do conto homônimo, da escritora Pós Colonial Jhumpa Lahiri, com seus incensos, cheiros de curry, almofadas coloridas e magia, querendo comprar peixe no mercado nos arredores da cidade para onde migrara, acho que Boston, e sentia saudades da sua Índia particular. E não sabia dirigir. Conto belíssimo sobre diferenças culturais entre tantas coisas. Mas assunto para outro texto.

Ontem , no aeroporto, enquanto nós irmãs dizíamos adeus novamente, sentimos coisas que não tem palavras. Felicidade por a minha irmã estar voltando para casa, e um profundo desconforto de impotência por não podermos mantê-la aqui. Nossa zona de contato, quebrada pelo vidro esfumaçado da polícia federal. Vendo-a com a bolsa da bandeira do Brasil, cheia de camisetas de uma copa desastrosa, com revistas e jornais brasileiros, alguns pares de Havaianas, e castanhas torradas fresquinhas, penso que, nessas malas também embarcavam todo o seu amor por essas terras de pau-brasil e que lhe abastecem há tantos anos, renovando-lhes os votos da sua identidade ainda tão forte e tão presente. Fiquei a matutar palavras de Edward Said, Homi Bhabha, dos entre-lugares da vida. Conceitos sobre: alteridade, hibridismo, mímica, centros, lugares e deslocamentos, principalmente conceitos de Olhar/Gaze, se embaralharam nos meus já tão confusos pensamentos; e, toda teoria do mundo não era suficiente para vivenciar aqueles tão parcos segundos de impotência e estranheza, diante de um simples farewell tupiniquim.

No matter a quantos kilômetros viva. O cheiro de maresia e o barulho das ondas, acho que ainda são os tesouros prediletos que viajaram nas malas da minha irmã. Acabo de saber que meus sobrinhos, ao abrirem as malas já na sua volta, exclamaram: Mamãe, você trouxe o cheiro do Brasil. E assim, cada presentinho exalava esses cheiros tão subjetivos e de maracujá da Natura, de uma identidade entranhada em todos os poros.

E eu, ao contrário de O Estrangeiro de Camus, chorei. Não no enterro da minha mãe, gracias a la vida! Mas no aeroporto: sem malas e aparentemente sem destino nenhum!

Ana Adelaide Peixoto – 20 de julho de 2010 


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