Rui Leitão

Jornalista e escritor.

Geral

“Sou apenas um rapaz latino-americano”


29/11/2013

Foto: autor desconhecido.

No período em que o Brasil viveu sob o regime de uma ditadura militar, havia uma censura muito forte em toda e qualquer produção cultural; principalmente na música. Em tudo se via uma mensagem subliminar de protesto. Por isso Belchior resolveu compor “Sou apenas um rapaz latino-americano”, onde ironiza a situação vigente no país naquela época (1976), e a tentativa do sistema em enquadrar os artistas quanto ao que era permitido compor e cantar.

“Eu sou apenas um rapaz/ Latino-Americano/Sem dinheiro no banco/Sem parentes importantes/E vindo do interior”. Belchior procura se identificar como um cantor da terra, pobre e sem os sobrenomes que pudessem lhe dar uma importância maior diante dos poderosos do regime. Não era um rapaz da metrópole. Trazia na sua origem a simplicidade de um cidadão comum do interior.

“Mas trago de cabeça/ Uma canção do rádio/Em que um antigo/ Compositor baiano/Me dizia/Tudo é divino/ Tudo é maravilhoso”. Faz referência à música de Caetano Veloso, “É proibido proibir”, em que na sua letra fala que “tudo é divino, tudo é maravilhoso”. Claro que isso era uma forma jocosa de Caetano criticar a situação em que se encontrava o país. Na verdade uma gozação, porque nada era divino ou maravilhoso naquele momento. Mas a música ficou na sua cabeça.

“Tenho ouvido muitos discos/Conversado com pessoas/Caminhado meu caminho/Papo, som, dentro da noite”. Procurava se informar, entender o que estava acontecendo. Afinal de contas, a mídia estava controlada pelo governo. Era preciso então compreender as mensagens contidas nos discos que eram lançados, conversar com as pessoas para melhor se situar com a realidade. Assim dava curso a sua vida como lhe era possível e de acordo com as circunstâncias. “Caminhar dentro da noite”, entendendo a noite como a escuridão da ditadura em que vivíamos.

“E não tenho um amigo sequer/Que acredite nisso, não./Tudo muda!/E com toda razão”. O sentimento era de que ninguém acreditava na propaganda oficial que colocava as coisas como se estivessem na absoluta normalidade. Havia, pois, uma expectativa de mudanças, era necessário plantar essa semente de esperança.

“Mas sei que tudo é proibido/Aliás, eu queria dizer/Que tudo é permitido/Até beijar você/No escuro do cinema/Quando ninguém nos vê”. Ele não aceitava essa definição de que tudo era proibido. Resistia a concordar com isso. Na verdade, apesar das regras impostas, ele queria ser um transgressor, fazer tudo o que desejasse. Quando fala que o beijo proibido na namorada seria dado no escuro do cinema, ele tenta dizer que essa violação às ordens determinadas seria feito às escondidas, para que não pudesse ser descoberta. É o estímulo a não se submeter ao império do “eu quero, eu posso, eu mando”, tão característico dos governos totalitários. A reação teria que ser exercida com inteligência, na surdina, estrategicamente disfarçada.

“Não me peça que eu lhe faça/Uma canção como se deve/Correta, branca, suave/Muito limpa, muito leve”. Nega-se, portanto, a fazer músicas ao agrado dos ditadores, obedecendo a condições pré-determinadas. Ele queria falar o que sente, sem restrições. Exprimir o que o coração ansiava dizer, ainda que pudesse ser considerada pesada, agressiva, contestadora.

“Sons, palavras, são navalhas/E eu não posso cantar como convém/Sem querer ferir ninguém”. Não admite ser conivente com o estado de alienação, a que buscavam impor ao povo brasileiro, em especial aos produtores culturais. O seu cantar seria verdadeiro e a realidade das palavras emitidas feria como navalha, aqueles que tentavam enganar sua gente.

“Mas não se preocupe, meu amigo/Com os horrores que eu lhe digo/Isso é somente uma canção/A vida realmente é diferente/Quer dizer/ A vida é muito pior”. Imagina que suas colocações estejam assustando, pela coragem de falar coisas que normalmente não seriam permitidas. Mas, cumpre de maneira mais incisiva o seu objetivo de chamar a atenção para a gravidade da situação do Brasil, e diz que a realidade é muito pior do que a exposta na canção.

“Mas se depois de cantar/Você ainda quiser me atirar/Mate-me logo!/À tarde, ás três/Que a noite/Tenho um compromisso/E não posso faltar/ Por causa de vocês”. Desafia os censores, a ditadura. Diz que vai cantar mesmo as músicas proibidas e se quiserem lhe impedir que atirem nele. Mas façam isso á tarde, porque não quer, por causa deles, faltar o compromisso da noite.

“Mas sei que nada é divino/Nada, nada é maravilhoso/Nada, nada é secreto/Nada, nada é misterioso”. Encerra sua canção com uma manifestação de que nada era do jeito que se propagava. E afirma que nada fica sem que as pessoas saibam. O que acontecia nos subterrâneos da ditadura começava a ser do conhecimento de muita gente. A verdade nua e crua já era percebida por muitos.

• Integra a série de crônicas “PENSANDO ATRAVÉS DA MÚSICA”.

 

 


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