Geral
“Roda viva”
10/10/2013
Foto: autor desconhecido.
O Brasil vivia nos anos 67/68 um clima de muita agitação, com os estudantes e a intelectualidade manifestando a insatisfação de parte da população que percebia com clareza o golpe militar que feriu de morte a nossa democracia. Na música estava a expressão mais inteligente dos protestos e das mensagens de ânimo para enfrentamento da ditadura. No entanto, em razão da forte censura da época fazia-se necessário utilizar-se de metáforas, linguagem figurada, etc. Assim procurava-se driblar os censores. Chico Buarque foi um dos melhores cérebros na produção de composições musicais com letras que exprimiam repúdio ao “status quo” que vivíamos naquele tempo.
A música “Roda Viva” foi composta para a peça teatral do mesmo nome, encenada em 1968, ano em que um grupo de anticomunistas invadiu o teatro em São Paulo, destruiu cenário e agrediu atores. Sua letra fala de descontentamento social, de repressão às manifestações artísticas, de saudade da liberdade e das restrições que se impunham à produção cultural, sempre sob o argumento de que tudo afrontava o regime e pregava a subversão da ordem, segundo a ótica dos ditadores.
“Tem dias que a gente se sente/como quem partiu ou morreu/A gente estancou de repente/ou foi o mundo então que cresceu”. Chico interpreta o sentimento que dominava os brasileiros que não se deixavam enganar pela propaganda da ditadura e enxergavam o regime de força que havia se implantado no país. É como se houvéssemos partido sem saber para onde íamos. Como se os acontecimentos vivenciados representassem a morte, o fim de uma vida onde tínhamos domínio da nossa vontade de ir e vir. Se perguntava: fomos tomados de uma paralisia coletiva ou fomos tragados pelo crescimento do mundo?
“A gente quer ter voz ativa/no nosso destino mandar/mais eis que chega a roda viva/e carrega o destino pra lá”. O desejo de gritar, ecoar a voz de reação ao que acontecia de ruim para o nosso povo e a nação, a vontade de se insurgir, rebelar-se, ter controle das nossas vidas, definir o que queríamos, o que fazíamos, o que planejávamos. Mas éramos de repente contidos pela força do poder, imposta sem direito a argumentar, justificar, explicar nossas ações. O nosso destino era guiado pelos que detinham o mando, o governo. Uma desagradável sensação de impotência.
“A gente vai contra a corrente/até não poder resistir/na volta do barco é que sente/o quanto deixou de cumprir”. O entendimento de que era importante enfrentar quem estava nos amordaçando, nos torturando, nos matando, nos oprimindo, nos desrespeitando enquanto cidadãos. Fazer tudo isso enquanto possível. No entanto, novamente Chico acorda para a realidade cruel que vivenciávamos e admite que ao nos depararmos com a violência política experimentávamos a angustiante constatação de que infelizmente não havíamos cumprido o que tencionávamos. Éramos vencidos pela tirania, a prepotência, a injustiça, o absolutismo.
“Faz tempo que a gente cultiva/a mais linda roseira que há/mas eis que chega a roda viva/e carrega a roseira pra lá”. O compositor usa simbolicamente a roseira para lembrar a democracia. Rememora todo um esforço histórico de nosso povo regando essa roseira, construindo nossa democracia. E, lamenta, que inesperadamente chega a roda viva, o golpe militar, e carrega a roseira, a democracia, pra lá. Perdíamos nossa liberdade. O Brasil havia mergulhado na escuridão da ditadura. Nossa história ganhava uma mancha que até hoje queremos esquecer.
“A roda da saia, mulata/não quer mais rodar, não senhor/Não posso fazer serenata/a roda de samba acabou”. Desaparecia a alegria, a disposição de dançar, o sorriso fácil. Dominava o império do medo, do castigo, da tortura, de sujeição a autoridade dos ditadores. A censura inibia a manifestação artística. Não se podia cantar livremente, só o que era permitido. O samba, ritmo genuinamente brasileiro, acabou. Assim Chico queria dizer que estávamos proibidos até de exercitarmos o ditado popular que diz há séculos de que “quem canta seus males espanta”. O regime não queria que espantássemos o mal que estavam nos afligindo.
“No peito a saudade cativa/faz força pro tempo parar/mas eis que chega a roda viva/e carrega a saudade pra lá”. As lembranças de quando tudo era diferente faziam com que nos esforçássemos para fazer o tempo parar. Tentar estancar o sofrimento do nosso povo. Recuperar nossos direitos humanos e nossa capacidade de agir e pensar livremente. Mas a ditadura nem isso concordava, que alimentássemos a saudade da democracia.
Ainda bem que essa tenebrosa noite passou, de triste memória. Saibamos cultivar a “roseira” e não deixar que jamais ela seja levada “pra lá”.
• Integra a série de crônicas “PENSANDO ATRAVÉS DA MÚSICA”
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