Ana Adelaide

Professora doutora pela UFPB.

Geral

Resquícios de uma Sinhá


12/10/2010

Foto: autor desconhecido.

 Sempre achei mais que complexa a relação patroa x empregada. Já escrevi crônicas sobre algumas dessas profissionais que compartilharam o fogão junto comigo, que foram poucas: Saudades de Mocinha, Antonia, Raimunda, Neves, e Zezé, só para citar as melhores e que por muito tempo, fizeram a minha vida melhor. E, apesar das dificuldades, sempre contei com boas pessoas para trabalharem comigo. Aliás, condição primeira? Empatia.

Pois há alguns meses vinha tendo uma experiência nova e traumática: por necessidade estava com uma secretária cuja energia me era esquisita. Sem compromisso, irresponsável, nada profissional e todos os adjetivos que talvez uma patroa falando do seu lugar de poder, não suporta. Tudo era uma barreira intransponível. Sua aparência; seu ar irônico; suas mentiras, enfim…tinha que respirar muito, respiração profunda, para não fazer eclodir das minhas entranhas, a minha porção mais sombria.

Eis que sábado ela me telefona às 6.15 da manhã, eu ainda me recuperando da Dengue, e de um fracasso eleitoral…, para me dizer que arrumasse outra. Justo sábado, quando, lambendo as feridas das eleições do candidato de casa, iria fazer um almoço para celebrar à vida. Nada como boa comida, boa bebida, para re-começar à busca da ordem e da alegria. Funciona!

Pois a maledeta veio com mal-criação às 6 da matina, bem típico do seu des-compromisso. Como ousas? Perguntava eu do topo do meu lugar de Patroa?

Entrei em pânico, mas cancelar tudo seria dar-lhe o gosto da agressão. E decidi: o almoço sairá, nem que seja ovo cozido com macarronada ao sugo! E lá saí tomando as providências, pedindo ajuda, dividindo tarefas, me descabelando, sim, porque não tenho o talento dessas mulheres maravilhosas que em 20 minutos dão conta de uma boa mesa. Preciso de tempo, de notas, de gente pegando no pesado. Sou boa para orquestrar, mas confesso que diante de um balcão, paraliso… Fiquei a pensar nos textos das African Americans, Alice Walker e Zora Neale Hurston. No momento, pedi aos alunos para lerem Art and Such, onde Hurston discute os tantos temas que elas, escritoras negras, queriam escrever, outro qualquer que não fosse raça (No Negro exists as an individual – He exists only as another tragic unit of the Race/ Nenhum Negro existe como um individuo – ele só existe como uma unidade trágica da Raça – tradução livre). Pois lá estava eu, só querendo pensar em classe.

Mas, na vida, nada acontece se a gente não fizer das feridas, trampolim para nossas pequenas Epifanias. E discutindo James Joyce nas aulas de Literatura Inglesa, não poderia perder essa oportunidade, para racionalizar sobre minhas pequenas virtudes/e grandes defeitos. E duas coisas me corroeram durante todo o dia: Primeiro um assunto que já falei nesse espaço, e que, não tem feminismo que me dê conta, que é o trabalho doméstico. E não falo daquele trabalho explícito: cozinhar, lavar, passar e varrer. Falo de uma outra realidade por demais complexa; uma maneira/rede de olhar e fazer dentro de uma casa, que só uma mulher tem.

Dentre tantas coisinhas miúdas, já na dispensa dos mantimentos, me deparo com grãos mofados, bichinhos a andar pelas farinhas; cadê o pano de chão? Não tem nenhum! E esses baldes de lixos? Sujismundos! As verduras na geladeira, frescas, podres, amarelas, tudo misturado! Pratos quebrados, travessas trincadas; sujeirinhas miúdas que me aborrecem (sou bem zen em matéria de serviços domésticos, e nada exigente, mas gosto tanto de ver tudo organizado…tudo que não sou e não sei como fazer…).

O mais intrigante é que, desse mundo invisível, e dos deuses das pequenas coisas, é que saem as grandes. Quem não for dona de casa não entenderá jamais do que falo. O trabalho explícito, esse é mais fácil de fazer, operacionalizar, exigir. Mas existe outro, bem mais complexo, subjetivo, que, sem ele, nada funciona. E para que se faça esse trabalho mágico com maestria, só se estando à frente da casa. O todo-dia-todo é que vai lhe dar o norte, e lhe mostrar essa realidade quase imperceptível a olho nu. Tudo é microscópico, mas é dessas minúcias que, o macro e o funcionamento da casa pode acontecer. Como não lembrar de Virginia Woolf e suas palavras no ensaio Women and Fiction: Often Nothing tangible remains of a woman´s day. The food has been cooked and eaten; the children that have been nursed have gone out into the world. Where does the accent fall?/Normalmente, nada de tangível permanece de um dia de uma mulher. A comida foi feita e comida; as crianças cuidadas e já partiram para o mundo. Onde é que se dá à ênfase?- tradução livre) Quando Woolf se faz todas essas perguntas. Na verdade ela está ensaiando sobre as complexas relações das mulheres com a criação artística, mais especificamente com a criação literária. E eu, fico perambulando por suas idéias, para minimizar minha impotência frente a esse trabalho que me desestabiliza….

E enquanto driblava minha raiva da cozinha, da área de serviço, e da minha impotência diante de tanta intangibilidade….sentei no Rio Piedra e Chorei! Nada como Paulo Coelho para essas horas de profundo desamparo…Mas como? Chorar seria entregar os pontos e me deixar abater pela adversária! Tenho que tirar forças ocultas para brilhar na minha festa, pensei. Posso e faço! Eis a questão!

Então, mãos a obra. Liguei para uma faxineira da lista. Corri no mercado de peixes, cerveja no freezer, uma massa à Carbonara para lembrar de Javier Barden e dos coqueiros de Bali….; uma salada Coleslaw (picar verduras em tiras exorciza a raiva….), para reverenciar os 70 anos de John Lennon em Liverpool, e das minhas noites nos pubs de Warwick….; umas batatas com alho, alecrim e azeite senhora vó!; uma torta dois amores (Sim!Sempre o amor!); sorvete de coco e castanha da Freeberg , e amendoim fresquinho para apimentar os sentimentos afrodisíacos de todo mundo. Sem falar na primavera: Ai Cecília Meireles, como suas palavras me acalentaram: Aprendi com a primavera; a deixar-me cortar e voltar sempre inteira. Pois jurei que brindaria com amarula uma nova libertação.

A outra coisa a ponderar na minha epifania doméstica, foi ruminar o fato de uma rejeição em oposição a todos esses sentimentos contraditórios, que as mulheres teimam em afirmar quando querendo ser tão generosas e bradam em retumbante alarde: Ah! Minha empregada é como se fosse da família! Não é! Afirmo! Só se for da família ancestral dos escravos! Continua sendo uma relação ambígua exatamente pela nossa incapacidade de estabelecer limites do privado/profissional; de misturar as fronteiras; e de depois não saber lidar com tantos séculos de trabalho escravo. Acho sempre difícil ser incisiva e doce, exigente e compreensiva….e tantos outras coisas de fronteiras cada vez mais difusas e dolorosas.

E por entre constatações de que estava mal servida e mal paga, eis que me vi num navio negreiros, com a chibata na mão. Senti toda a minha porção Casa Grande e Senzala, eu, claro no lugar da Sinhazinha, nesse momento a dar chicotadas imaginárias….E confesso que não é nada agradável para uma mulher do século XXI, feminista convicta, reconhecer sentimentos tão tenebrosos. Ver todas as minhas falhas sombrias, minhas dificuldades com o semelhante, foi assustador.

No fim do dia, já com a cozinha toda lavada e os convidados partidos, só me restou um recolhimento quase febril; um aninhar-se nas minhas cobertas a constatar que o dia tinha sido lonnnnnngo; mas que eu tinha conseguido administrar tanta coisa: a surpresa, o susto, o medo, a raiva, a rejeição, o imponderável, a revolta, a traição, a vingança, o cansaço, enfim….tantos sentimentos pesados por demais para minha cabeçinha ainda com todos os ossinhos doentes do mosquito. No dia seguinte, já amanheci outra. Nada como a possibilidade de juntar os pedaços, lavar a louça do domingo,e tocar os dias, digo, As Horas!

E começa tudo outra vez.

Que me desculpem as criançinhas, hoje no seu dia, estou mais para o Lobo Mau, digo Loba! Mesmo assim,Feliz Dia das Crianças!

Ana Adelaide Peixoto – João Pessoa 10 de outubro , 2010


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