Cotidiano
Quem muito se baixa
03/05/2025

A bem da verdade, fui um menino de vó. Das duas, para ser mais preciso. De Vicentina, a mulher do italiano, nos primeiros anos de vida, ainda na época em que cursava o externato de Dona Zilda, de saudosa memória.
E da pequenina Izabel, mulher do escritor e jornalista Rocha Barreto, já depois da maioridade, depois da queda dela, época em que eu lia o Novo Testamento para ela todos os domingos após o café da manhã.
Por isso, me identifiquei de imediato com os barões da pisadinha, e me senti o próprio menino de vó, com as regalias, os presentes e, principalmente, a tal questão da impunidade.
Muito embora, essa seja apenas uma visão superficial em um tempo distante onde a avó estava muito ocupada em proteger a netinha do lobo mau e a netinha do papa figo.
E a verdade, é que, por trás daquele ar de noviça rebelde, aflorava um feminismo latente e uma enciclopédia de conhecimentos e da mais vã filosofia de vida.
Com elas, aprendi um pouco de tudo. Inclusive os chamados ditos populares.
O que eu mais gostava era quem muito se baixa, o fundo aparece.
Mas, haviam muitos outros, como quem não arrisca, não petisca; casa de ferreiro, espeto de pau e de grão em grão a galinha enche o papo.
Diferentemente da música, não deixei nenhuma das duas. Ambas partiram antes que eu saísse de casa, mas tenho ótimas lembranças do chá da tarde da velha senhora e também dos comentários da presbiteriana sobre as passagens da paixão de Cristo.
Com elas, aprendi a ser tolerante e a respeitar as opiniões das pessoas, além de saber perdoar quando isso se torna necessário.
E também amar as mulheres, rezar com elas e para elas.
Além de elogiar sempre que puder e até mesmo fazer as suas vontades.
E também nunca se baixar. Nem mesmo para elas, nem para ninguém.
Apesar de que,o mundo está cheio de pessoas humilhadas, que concordam com tudo e mostram demais.
A falta de vergonha, inclusive. E ainda a indiferença, a injustiça e a desfaçatez. E a falta que uma avó faz. Nem que seja só para ter um anjo por perto.
Para fazer aquele bolo que você gosta e servir com um autêntico chá-inglês.
Passei várias tardes da minha infância gozando desse privilégio, sem saber que por trás de um blend daqueles existia tamanho amor que não caberia numa xícara.’
E que foram encontros e despedidos que nem se demoraram naquela casa de vó.
Dia desses passei na frente das duas casas que ainda estão de pé, e pensei ver o vulto delas nas janelas.
Ainda pensei em fazer um aceno, mas preferi lembrar delas reclamando da saúde com um sorriso nos lábios.
De outra vez eu falo, e quem sabe conto o que andei fazendo todos esses anos. O menino cresceu. Mas, foi bom enquanto durou. Ainda sinto o cheiro no ar.
O Portal WSCOM não se responsabiliza pelo conteúdo opinativo publicado pelos seus colunistas e blogueiros.
Os comentários a seguir são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site.