Rui Leitão

Jornalista e escritor.

Geral

“Queixa”


02/02/2014

Foto: autor desconhecido.

As letras das músicas compostas por Caetano Veloso possuem um estilo clássico, com o uso de metáforas e muitas mensagens filosóficas. Por isso mesmo algumas são de difícil interpretação. “Queixa” é uma cantiga de amor, onde o “eu lírico” sofre por não ser correspondido pela mulher que conquistou seu coração e decide proclamar sua insatisfação.

“Um amor assim delicado/Você pega e despreza/Não devia ter despertado/ajoelha e não reza”. Lamenta que tenha dedicado um amor sereno, conforme as regras do romantismo, cortês, educado, e a sua amada não considerou o sentido poético de sua paixão. Talvez tenha achado piegas e assim desdenhou dos seus sentimentos. Utiliza-se da expressão popular “ajoelhou tem que rezar”, para dizer que ela não devia ter lhe provocado fazendo nascer no seu coração essa sensação embriagadora de amar alguém. Se não havia correspondência de sentimentos porque o fez acreditar que sim?

“Dessa coisa que mete medo/Pela sua grandeza/Não sou o único culpado/Disso tenho certeza”. A intensidade da paixão causa preocupação, temor, embora saiba que o efeito disso tudo não é resultado de atitudes únicas dele. Houve compartilhamento, um jogo de sedução vivenciado a dois. Não estaria totalmente envolvido emocionalmente se não tivessem existidos sinais de cumplicidade.

“Princesa, surpresa, você me arrasou/Serpente, nem sente que me envenenou/Senhora, e agora, me diga onde eu vou/Senhora, serpente, princesa”. Em princípio a trata como princesa, a mulher dos sonhos, mas lastima que surpreendentemente tenha sido abandonado por ela, deixando-o desolado. No mesmo momento chama-a de “serpente”, de cujo veneno se viu induzido a provar. E pergunta, agora já tratando como “senhora”, dona das suas vontades, o que deve fazer, para onde ir. Mistura, numa só estrofe, o encanto da “princesa”, a peçonha da “serpente”, e o poder de mando da “senhora”, para, a um só tempo, venerar, culpar e se submeter às consequências dessa paixão.

“Um amor assim violento/Quando torna-se mágoa/É o avesso de um sentimento/Oceano sem água”. A indiferença com que é tratado esse amor, transforma o sentimento da ternura e do apego, em desgosto, dor, sofrimento. Invertem-se as sensações. A admiração dá lugar à aversão. Os desejos são substituídos por rejeições. O devaneio converte-se em pesadelo. Não existe um oceano sem água, como não pode perdurar um caso amoroso sem enlevo mútuo.

“Ondas, desejos de vingança/Dessa desnatureza/Bateu forte, sem esperança/Contra a tua dureza”. Manifesta-se um querer dar o troco, revidar, já que não vislumbra esperança de ter seu amor aceito por ela. O desinteresse e a frieza com que foi tratado fazem compreender o quanto é inútil continuar insistindo.
 

“Um amor assim delicado/Nenhum homem daria/Talvez tenha sido pecado/Apostar na sua alegria”. Revela que um amor puro, de certa forma até desprovido de intenções carnais, ninguém ofereceria. O erro foi pensar que estava proporcionando a ela também esse encantamento próprio de uma paixão.
 

“Você pensa que eu tenho tudo/E vazio me deixa/Meu Deus não quer que eu fique mudo/E eu te grito esta queixa”. Resolve reclamar, exteriorizar sua decepção, gritar sua lamúria. Sente-se vazio e por isso precisa falar, não se calar, sair do silêncio a que se impôs em nome desse amor.
 

• Integra a série de crônicas “PENSANDO ATRAVÉS DA MÚSICA”.

 

 


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